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Obras de Amigos

Minha Morena – Valdemar Queiroz

Estória bonita e alegre, a de minha morena. Não sei se para ela. Para mim, representava o que eu sabia e conhecia de mais rico em cores, cheiros e sabores.

Ricarda já era quase velha quando minha lembrança a guardou para sempre, porém aos olhos de um menino de cinco anos de idade era um detalhe pouco importante, talvez conhecido pelos outros, adultos na maioria. Usava saias compridas, varriam o chão que pisava, sempre descalça. As saias de cores vivas e variadas contrastavam com batas de uma brancura de neve – neve que eu não conhecia, mas vira em quadros e revistas. Um pano colorido cobria seus cabelos encarapinhados, poucas vezes os vi, já pintados de um branco acinzentado.

Tudo era lindo na minha morena, sempre a chamei assim, até o dia de sua morte, quando eu já andava pelas faculdades da vida. Duas argolas pendiam de suas orelhas: de ouro, engastando duas grandes pedras azuis, depois aprendi que eram turquesas. Escutei contarem que um branco senhor se apaixonara por minha Morena, verdinha, nascida de uma escrava alforriada. Fizera-lhe um filho, sumido depois de crescido, pelas brenhas distantes, à procura de ouro e pedras de valor nos longes da Chapada Diamantina. Tardiamente entendi a tristeza nos olhos escuros de minha querida, saudosa de sua cria.

Não era empregada permanente na casa em que nasci. A cidade vivia basicamente da cultura do fumo. Existiam armazéns enormes em muitas das ruas da cidade pequena. Não importa lembrar os nomes das multinacionais, evidentemente com nomes bem brasileiros, disputando as colheitas dos plantadores de tabaco, sem esquecer a mão de obra aviltada, composta de mulheres − as escolhedoras − peritas em selecionar as melhores folhas de fumo, chegadas em lombos de burro.

Na escolha das folhas começava o processo de fabricação dos charutos e cigarros. O fumo de corda não era nobre bastante para ser fabricado nos armazéns. Era artesanalmente produzido pelos alugados nas fazendas do plantio das solanáceas, vulgo fumo ou tabaco.

Lembro de fugir de casa e ir ao encontro de minha Morena no maior armazém, onde suas mãos ligeiras criavam futuras fumaças. Agarrava-me à sua mão cheirosa e andávamos em silêncio eloquente até sua casinha. Jardinzinho de flores comuns, sala de tijolos vermelhos, cozinha grande onde reinava um fogão de lenha. Panelas de barro guardavam feijão e carne, cozinhados juntos. Farinha fina mantinha-se aquecida ao lado da chaminé.

Um prato de flandres era preparado, bolinhos de feijão, carne, mais farinha surgiam dos dedos da Morena; eu os aceitava em comunhão silenciosa, agradecendo tanto bem-querer.

Depois da comunhão, vinha a corrida pelo quintal, a subida em árvores conhecidas, até que a voz soturna se fazia ouvir.

− “Tá na hora de tu voltar pra casa. Tua mãe não vai te bater, não vou deixar. Ela deve tar te caçando por tudo quanto é lugar”.

Mesmo que eu apanhasse, as palmadas não iam doer. Tinha guardado alegria até minha próxima fugida.

Ah, havia os carurus de S. Cosme e S. Damião. Não se explicava a devoção de Ricarda pelos santos protetores de gêmeos. Tinha parido um filho só. Era alimentada por pais de mabaços a devoção de homenagear os não plenamente aceitos pela Igreja Católica no seu dia 27 de setembro. Os ricos, mais enriquecidos por dois filhos nascidos de uma só vez, ofereciam aos amigos e àqueles não tanto, um grandioso banquete, chamado caruru de preceito. Vatapá, galinha de xinxim, abarás, acarajés, moquecas e um desparrame de pratos cobriam as mesas, além do prato principal, sem contar as sobremesas muitas.

No terreiro da casa de Ricarda, servia-se um farto caruru, acompanhado de arroz branco, mais a farofa amarelada pelo azeite de dendê.

Havia uma reza diante do altarzinho onde os mabaços brilhavam por entre velas. Depois das orações, servia-se o farto de comer, molhado por muita cerveja e doses não tanto moderadas de pinga.

O samba começava, a roda era formada por várias mulheres de saias compridas que varriam o terreiro limpo. Palmas dos poucos convidados marcavam o canto:

“Cosme e Damião
de norte para o sul,
Cosme e Damião,
vem comer seu caruru”.

Tantos outros cantares ficaram perdidos na memória. Lanternas de papel de seda de várias cores guardavam velas acesas, quando as outras do pequeno altar tinham queimado todas.

Sortilégio ou fantasia, nenhum de comer requintado teve sabor comparável ao caruru daquele vinte e sete de setembro.

Passado o tempo anual de exploração de mulheres iguais a Ricarda, quase todas voltavam às casas onde cozinhavam, lavavam, varriam e arrumavam as desarrumações provocadas pelo ganho ilusoriamente maior nos armazéns de fumo. O tempo desse ganho maior durava pouco.

A casa da meninice ficava encantada com a sua volta. Ricarda reinava na cozinha, sabedora de todos os segredos dos bons quitutes.

A sala de jantar distava cinco degraus para baixo, até chegar aos domínios de minha Morena. Uma porta de madeira maciça marcava os limites entre a escada e a cozinha. Ficava sempre aberta.

Eu chegava cedo, logo depois do café da manhã, sentava-me num banco tosco, assistindo ao fazer do almoço. Enquanto criava os quitutes, Ricarda contava estórias tristes e alegres, ouvidas de gente morrida, outras inventadas para seu companheiro pequeno, fiel e atento escutador.

Não somente escutava as estórias. Provava cada comida cheirosa que a feiticeira aprontava, usando panelas de barro e de ferro.

A hora do almoço acontecia marcada pelas doze badaladas do sino maior da igreja vizinha. O burro menino ainda não sabia mentir. Não tinha fome. Tinha sido melhor alimentado do que se exigia na hora certa da refeição entre irmãos e os pais sabedores de tudo.

A mãe, então pensada tirana injusta, resolveu trancar a porta maciça, barreira entre o menino e sua Morena querida.

Já era o momento de fazer crescer o menino. A escola absorveu suas manhãs, deveres de casa ocupavam boa parte da tarde.

Ainda aconteceram as esperas à porta do grande armazém de fumo, as idas até a meia-água, passagem pelo jardim, parada na cozinha, onde os bolinhos de feijão eram carinhosamente construídos pelos dedos longos e escuros de minha fada sem maiores poderes mágicos. A corrida pelo quintal e a subida às árvores continuaram por tempo certo.

Morena Ricarda foi perdendo o saber escolher as folhas melhores de fumo para os charutos especiais. Foi ficando no seu canto, reumatismo agravou-se, a vista foi ficando cada vez mais curta.

O eu crescido, projeto tosco de adulto, passava as férias na cidade fumageira. Chegou a notícia de que Ricarda estava nas últimas. Cheguei a tempo de assistir à extrema-unção, de segurar aquelas mãos, imaginando que seus dedos apertavam levemente minhas mãos, não mais do seu menino.

Devo ter ficado muito tempo ao lado do corpo imóvel de minha Morena. Percebi que as argolas de ouro e turquesa não enfeitavam as orelhas sem vida. Soube depois que uma parenta as herdara, julgando-se merecedora dos berloques, porque ajudara nos dias finais da velha.

Tentei comprar os brincos, símbolo de tantas lembranças. Um mascate qualquer se antecipara, ninguém soube informar o seu destino.

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