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Obras de Amigos

Funeral – Valdemar Queiroz

Muito pouca gente irá ao meu funeral. Talvez nem as pessoas suficientes para pegar nas alças do caixão, o mais simples possível. Flores, não haverá. Para quê? Já chegariam meio murchas e não acho que defunto precise de enfeites.

Começo fúnebre e não poderia ser diferente. Pior, se estas linhas forem achadas e lidas antes de jogadas na lata de lixo, e o leitor for inteligente e ilustrado para lembrar o defunto autor de Machado de Assis, em suas Memórias Póstumas de Brás Cubas. Trágico: além do tom inadequado para quem esperasse escrito alegre, o escrevinhador poderia ser acusado de plágio. A semelhança acaba ai, já que o autor se considera apenas morto, vivendo num cemitério onde vagueiam outros parecidos com ele.

Somente a origem da estória pareceria uma autobiografia; eu sei que desabafo não serve para argumento literário e acredito que somente os loucos ou raros merecem biografia, de preferência valorizando os aspectos bonitos e valiosos da loucura e da raridade. Tristezas, mesquinhez e tragédias não precisam ênfase em arte; a vida está cheia delas.

Frases ouvidas durante parte da existência perdem-se no esquecimento; outras se guardam. Meu pai costumava dizer: “Quando eu morrer, vem gente de oito léguas ao redor para me levar aos sete palmos abaixo da terra.” Para quem nunca ouviu falar em légua, ela mede seis quilômetros e seiscentos metros; os sete palmos eram a medida de profundidade das covas. Eram raros os mausoléus de granito ou mármore, as gavetas superpostas não existiam e cremação era considerada sacrilégio.

Eu ria da vaidade de meu pai, da certeza de sua importância e do bem-querer que sabia merecer. Eu gostava de provocá-lo: “De que vai adiantar tanta homenagem, se vosmicê estará morto e trancado num caixão?” Era tão grande e calma a certeza de seus méritos que minhas palavras não mereciam resposta, além de resmungos e olhar de repreensão por meu desrespeito filial.

Não podia prever o desamor que acompanharia meu caminhar até chegar aos meus restos.

Sem receio de nova acusação de plagiador, ousaria cantarolar: “já fui moço, já gozei a mocidade…” Valeu. Surgiram mais descaminhos do que caminhos. A escolha dos descaminhos fez a grande diferença, de nada ajudando o aprendizado de teorias. Certo afirmar que cada ser humano faz o seu destino, crendo em algo impossível − onipotência. Parece lógico que o meio faz o homem, mas cabe a ele modificar esse meio, quando sabe, pode e os outros deixam. Ai reside um grande nó: os outros existem. Mesmo filosofia de botequim ensina que é bom viver, mas muito difícil. Mais difícil ainda conviver, viver com. Infernos interiores de uns invadem os purgatórios dos outros. Acontecem mais desencontros do que encontros, multiplicam-se perdas e lutos. Como é adulto desconsiderar as perdas marcadas na infância. Deixam marcas indeléveis, cicatrizes que, no mínimo, coçam de quando em vez.

Viúvo é estado civil de morto que se preza. A mulher morreu bem longe, já separada por não mais suportá-lo, tendo antes de finar-se vivido às custas de pensão que conseguiu, ajudada por caros advogados brilhantemente espertos. Não se destinava aos filhos, dois, já bem situados na vida, mas alegara ter interrompido uma brilhante carreira (no comecinho, é a verdade), para dedicar-se às prendas do lar e à educação das crianças, necessitadas de sua ausência, preenchida por babás e empregadas eficientes e dispendiosas. Sua presença era indispensável em chás de caridade, na realização de festivais de cultura e em outras atividades cansativas, porém excitantes.

Não se chega ao enterro antes de ter vivido. Nem sempre as cerimônias fúnebres correspondem aos méritos dos defuntos. Quando morrem ricos ou poderosos, em pleno exercício de sua influência, (este é um detalhe importante) todas as pompas são cumpridas. Dinheiro e poder são sinônimos quase que perfeitos. Ausência dos dois prejudica qualquer funeral que se preze. É terrível quando se acrescenta a isso o desamor, não importa se merecido ou não.

Começar a narrar um conto é fácil; as dificuldades vão crescendo no desenvolvimento e, geralmente, fica difícil encontrar um fecho bonito, nem precisa ser de ouro. A dúvida fica: chegar logo ao desenlace, para não abusar da paciência do leitor, voltar a um ponto considerado importante.

Ainda não foi mencionada uma palavra detestável − culpa. Se a palavra é feia, carregar o sentimento é horrendo. Fica mais leve jogá-la para os outros. Nas famílias encontram-se os bodes expiatórios mais sedutores, em seguida usam os amigos. Se não bastar, a humanidade fica responsável por nossos erros, chegando-se ao máximo de recriminar Deus por nossos pecados e burrices humanas.

Minha linha de conversa cheira a chantagem; feita por pretenso defunto parece assombração de alma penada. Mesmo ciente dos meus descaminhos, confiei em amor que acreditava andar espalhando.

O tempo não avisa de sua pressa, surpreendeu-me na terceira idade, velhice, idade provecta − a escolha é livre. Recolhi-me por vontade própria a um asilo de idosos, que aqui chamam lar de velhinhos. Se houvesse mais dinheiro dos internos, poderia ser uma clínica de repouso. Instalações limpas, comida farta e balanceada, servida em horários adequados, a que falta o tempero caseiro de refeição feita para poucas pessoas. Não há ocupação para preencher as horas intermináveis, a televisão “emburrece” e torna a maioria cada vez mais passiva. É comum ver alguns com os olhos perdidos num horizonte que não existe, poucos ainda saem para passeios pelos arredores.

O horário de visitas é bem pensado e amplo, mas as visitas são muito raras. Ouvem-se queixas da ingratidão de filhos, de amigos que sumiram. Há os que mentem, recebem visitas semanais, presentinhos logo jogados de lado. Não se sabe o que pesa mais, a carência ou a solidão.

Hoje, mais do que nunca, sinto-me morto, cercado de outros que se esqueceram de ir embora.

Acontece que acabo de voltar de um cemitério real, acompanhei dois desertores do nosso asilo… É provável que eu esteja carregando a inveja dos dois que caíram na real. Foram tão diferentes as cerimônias das duas despedidas! Um deles deitava-se em caixão de madeira envernizada, forrado de seda; havia flores e algumas coroas com inscrições que não afirmo insinceras.

Numa capelinha ao lado jazia o outro, dentro de um esquife de madeira sem forro ou verniz. Nenhuma flor. Esperei a saída do enterro mais pomposo, para acompanhar o outro, carregado por quatro funcionários do cemitério até a cova rasa para os pobres cavada. Arranquei umas folhagens e coloquei-as sobre a terra ainda fofa. Um dos carregadores mansamente perguntou se era meu parente. Um movimento de cabeça afirmou que sim. Demorei alguns minutos, tentando dizer uma frase mais parecida com um até breve.

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