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Obras de Amigos

“Adevogado” − Valdemar Queiroz

Todo mundo ria de Euzébio desde sempre. O nome, carinhosamente dado pelo pai em homenagem ao avô, provocara o apelido de Zebu, durante os anos da escola primária, além dos anos seguintes do ginásio, até o fim universitário.

Quebrara o nariz de alguns abusados que, não contentes de gritarem pelo Zebu, davam-se ao luxo de imitarem o som produzido pelo animal pacífico, ignorante das quizilas dos humanos, a pastar nas proximidades da primeira escola, onde Euzébio começara sua aprendizagem de vida e de letras.

Parecia praga, ninguém sabe de quem. O apelido correspondia ao aspecto físico do chamado Zebu. Baixote e gordo, quase sem pescoço, orelhas grandes semelhavam aquelas dos bois de raça. Pior: gorduras acumulavam-se na traseira entre a cabeça e o tronco, igualando-se à caricatura do cupim de um boi. Andar lerdo, apoiado em pés chatos, à infância não conhecera as botas capazes de consertar o defeito.

Mugidos de colegas que não eram zebus, coro de toadas rimando com o final do apelido de Euzébio seguiram acompanhando seu caminhar nos corredores da escola primeira, no ginásio seguinte, na faculdade final.

As reações violentas, os narizes quebrados foram substituídos por um aceitar irônico das brincadeiras ofensivas, aos poucos suportadas, finalmente desprezadas. A aceitação trabalhosa fez diminuir e quase cessar a molequeira não condizente com adultos, portadores de anéis de formatura, com pedras falsas de cores diferentes, correspondendo aos diversos campos em que Euzébio e seus contemporâneos iniciavam a militância.

Um Zebu “adevogado”, murmuravam os maldizentes, provavelmente iria mugir nos tribunais por onde exibiria seu rubi falso, cercado de brilhantes não verdadeiros, engastados em ouro.

A pronúncia do título ostentado era comum na região interiorana de seu nascimento. Em sua própria casa ouvira do pai a profecia alentadora: Vai ser “adevogado” de toga, não simples rábula igual ao pai e ao avô.

Era comum a existência de rábulas nas comarcas menores, poucos doutores de verdade submetiam-se à mesmice das questiúnculas corriqueiras nas terras em que mourejaram Euzébio avô e seu filho, pai de Zebu.

A família era respeitada, havia letrados representativos da inteligência local. Ainda no colégio, o futuro “adevogado” cometera algumas poesias, publicadas no jornal semanal, que era disputado entre os próceres existentes.

Rimas pobres − augúrio, tugúrio, horroroso, tenebroso, dor, amor − contavam as desditas de um projeto de literato do interior.

Ao ingressar na faculdade, animado pelos elogios recebidos no jornal de sua cidade, confirmados pelos intelectuais conterrâneos, Euzébio ousou desenterrar um dos poemas dentre suas glórias passadas, a fim de publicá-lo no jornal universitário. Os responsáveis pela edição bem que tentaram demovê-lo da ideia, argumentando que seus escritos estavam fora dos cânones de modernismo vigente, já se vislumbrava um pós-modernismo embrionário.

O poeta confiava nas musas, sobretudo gostava das rimas que não sabia pobres, achava lindos os tugúrios e bem mais belos os inefáveis augúrios.

Não demorou muito a publicação do número seguinte à estreia do vate bacharelando. Euzébio já estava no quinto ano de direito e inaugurava a prerrogativa de ser solicitador, vale dizer, apto a desempenhar as funções de um quase “adevogado”, não apenas rábula.

Difícil dizer de onde partiram as críticas ao poema de pobres rimas, de inspiração superada. É permitido não gostar de uma obra de arte, apenas confia-se nos limites razoáveis do criticar.

Imperdoável aceitar que um comentário comparasse as tiradas de um bardo ao mugido de zebus a pastarem nos campos ou mangas das terras de escritor respeitável.

A turma do “deixa disso” atuou. Euzébio não precisou limpar sua honra de poeta com o sangue do invejoso crítico das obras de futuro luminar das letras pátrias.

Ficou fácil esquecer a pendenga. Nas diferentes faculdades, ensaiavam-se os discursos de formatura, brigava-se pelo privilégio de ser o orador da turma; a solenidade atraía ouvintes na cerimônia de colação de grau, momento inesquecível no salão imponente do palácio da reitoria da universidade.

Bem que Euzébio se esforçou. Ofereceu almoço aos colegas, pagou cerveja e pinga que rolaram soltas no encontro para a prévia da eleição do orador da turma. Declamou poemas seus, entoou “Vozes d’África” e o “Navio Negreiro” de Castro Alves. Vitória do filho de político ascendente não ofuscou o brilho do momento em que Euzébio sentiu-se doutor de mesmo e a vera. Os seus pés chatos caminhariam firmes pelas sendas onde o direito clamasse por uma voz a confirmá-lo.

Festança encerrou os momentos maiores da grande vitória da família, dividida com amigos, aderentes e admiradores. Porco, carneiros, pato, galinhas e meio boi foram preparados como parte do que havia para comer. Gastarem economias acumuladas para aquela ocasião, o sacrifício valia.

Encerrados os festejos, a euforia deu lugar à formulação de planos para a carreira do recém-formado. De início, Euzébio conseguiu um lugar em escritório da capital, atenderia aos chamados do pai, toda vez que uma questão mais complicada e lucrativa merecesse os seus conhecimentos, adquiridos em cinco anos de dedicação aos estudos. Deixando de lado o pernosticismo com que alardeava a sua poesia e sua sapiência sobre aqueles que considerava grandes escritores, o bacharel dedicara-se com afinco aos livros e às tarefas universitárias.

Paixão maior: direito penal. Igual à maioria dos seus colegas, sonhava com um grande júri em que uma defesa possibilitasse exercitar com brilho o talento que julgava possuir.

Burro Euzébio Zebu. Ignorante de que o crime não compensa, sequer para advogados sonhadores, a não ser para uns poucos luminares, patrocinados por uns também poucos defensores dos oprimidos.

Pausa merecida para os pés chatos do Dr. Euzébio, caminhante nos corredores do fórum da cidade grande. Questões aqui, conversas acolá, o doutor aprendeu que o processo somente anda se um empurrão acontece. Entenda-se: não em todos os cartórios e varas, existem paradas, travessias de caminhos para respostas a tantos pedidos, dependentes de tropeços, de acomodações. Em resumo: de gorjetas (seriam origens dos mensalões?) que nem todos aceitam, porém vários exigem.

O tempo corria a seu modo, o digno Euzébio cumpria os seus deveres, somava vitórias pequenas, contudo, fazia o seu trabalho.

Até que um chamado aconteceu: um júri de arromba aconteceria na cidade natal de Dr. Euzébio. Ninguém mais do que ele para superar a competência de dois rábulas, o pai e o avô de quem herdara o nome, habitualmente convocados para os entreveros forenses.

O filho de um velho Manda-Chuva local lavara sua honra, assassinando o sedutor de sua esposa. Prato cheio para as solteironas locais, para os disse-que-disse dos ocupados com a vida alheia, onde crimes passionais aconteciam de caju em caju, ou seja, raramente.

Palavra em desuso: fremiu o coração do causídico, antecipando uma defesa de todos os valores em que acreditava piamente.

Estudos, noites em branco, consultas aos compêndios todos que jaziam na biblioteca pública, sem comentar as investidas nas coleções de colegas, professores e sapientes amigos.

Na cidade pequena onde nascera o doutor, o lavador de sua honra ultrajada merecia prisão especial, pois ostentava diploma de vago curso universitário. A esposa seduzida fora descansar na fazenda de um parente atencioso.

Esperava-se a vinda do Dr. Euzébio como se aguarda a chegada de um anjo exterminador de todos os males que assolam a terra habitada por gentes respeitáveis, e respeitadoras dos valores negligenciados por tantos carentes de princípios básicos.

Detalhe insignificante: o promotor designado para a cidade de Euzébio fora seu contemporâneo de faculdade e, achava-se também um luminar na ciência do direito, sem esquecer os voos nas esferas da literatura, o que inclui os terrenos da poesia.

A pequena cidade fervia. Afinal, era um momento raro: um júri com todos os condimentos para modificar a pasmaceira usual.

Nos bares locais, os aperitivos eram multiplicados. Apostas eram feitas, difícil escolher um favorito, o causídico local ou o promotor alienígena, respeitado por sua cultura e bem falar.

A chegada de Dr. Euzébio foi precedida de fofocas, ampliadas pela expectativa do encontro e confronto de dois expoentes máximos, ainda que limitados a proporções interioranas.

Não se sabe de onde partiu a conversa de que o Sr. Promotor era melhor conhecedor da ciência do direito, sem esquecer sua superioridade nos meandros da literatura e da poesia.

Pior: desencavaram o apelido do advogado visitante, além das afirmações de que o promotor rebateria os mugidos do Zebu opositor com argumentos nada bovinos.

Os ouvidos sensíveis de Euzébio foram suficientemente emprenhados. Revolta, ameaças, sussurradas e gritadas pelos dois partidos instalados ao redor de um crime passional que se tornara menor, se comparado à disputa entre os dois defensores do direito e das letras.

Ameaças de parte a parte acompanharam o passar do tempo, que desembocou no dia do grande evento. Cuidados de ambos os lados, para evitar problemas, tragédia maior que a morte de um sedutor abusado.

Não houve réplica nem tréplica. Bastou que, no decorrer de suas falas, o promotor imitasse um mugido, acompanhado por pequeno coral sem ensaios, porém afinado e eficiente, abafando as palavras do Zebu estreante no júri maior. Um tiro não matou o promotor. Interrompeu o júri tão esperado e o Dr. Euzébio foi acusado de tentativa de homicídio.

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