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Obras de Amigos

Como esta, as outras – Valdemar Queiroz

Bom dia, boa tarde, boa noite. Não sabe a que horas vocês o leem, se é que o escutam. Deseja-lhes um bom dia, boa tarde ou noite igual, ou seja, o melhor possível. Amanhecer tranqüilo, caminhada quase diária não longa demais, manhã de trabalho chamado de intelectual. Almoço leve seguido de calma soneca, entardecer anunciado pelas batidas de um velho sino centenário, de bronze mesmo, lembrando que é preciso rezar uma Ave Maria.

Rezar de verdade, pensando na mãe do Cristo, que os crentes esperam possa minorar as dores de cada qual na hora da verdade não anunciada.

Ainda reza Ave Marias, mas não esquece seus tempos de primeira comunhão. Aceitava dogmas, comungava feliz como ninguém, mas tinha inveja de beatas, de suas tias também beatas e solteironas.

Todos tinham os seus terços. Demorava rezar o Creio em Deus Padre, primeiro Padre Nosso, três seguintes Ave Marias, outro Padre Nosso. Salve Rainha, Mãe de Misericórdia. Mais o longo caminho: um Padre Nosso e dez Ave Marias, murmuradas várias vezes.

O terço demorava nos dedos infantis, voava nas extremidades reumáticas das senhoras devotas, símbolo de contrição, devoção e outros “ãos”. A lerdeza era o peso dos pecados que não sabia ter cometido. Corajosamente, sentou-se perto das futuras donas de pedaços do reino do Senhor. Diziam as preces de modo rápido de quem se sabe merecedor das glórias todas.

Custou a entender. As sequências de cada dez Ave Marias que, após a primeira, eram ditas assim: como esta, as outras, como esta, as outras…

Vem tentando rezar de modo parecido nos caminhos e descaminhos de sua vida. Não tem conseguido. Prefere mastigar cada conversa que manda para desconhecidos ouvidos de seu Senhor Maior, de sua Senhora tão grande quanto. De todos aqueles da Corte dos Céus que escutaram as conversas do menino crente que continua sendo, quando pode ou deixam.

Nem sempre, melhor, raramente, escuta resposta às suas rezas. Não que viva pedindo presentes iguais a prêmios de loterias ou baboseiras assim. Pede saúde em primeiro lugar, tal pedido segue embutido em agradecimentos por estar vivo, escapar de assaltos, que já acontecem na boa cidade longe de metrópoles.

Voltam as beatas distantes. Sempre intuiu que havia gente boa nos seus genuflexórios. Mais numerosas eram as hipócritas, maldizentes, sabedoras e comentaristas exaltadas de pecados mortais e veniais de todas as classes, de preferência das apelidadas elites. Suas censuras teriam o mérito de alertar pecadores em potencial.

Simplório: como esta, as outras, como esta, as outras esperanças de não queimar num inferno anunciado desde sempre.

Teria sido a desconfiança de que as tias e amigas delas, azedas e maldizentes não correspondiam à crença infantil da veracidade de dogmas e mandamentos da Santa Madre Igreja, que mataram uma vocação para o sacerdócio? Era incentivado por uma tia querida remediada numa família numerosa de quase pobres, enxergando, com o que chamava os olhos de sua alma bondosa, um caminho difícil mas pleno de recompensas nesse mundo e, muito mais valiosas, no paraíso assegurado aos eleitos entre os quais insistia em colocar sobrinho.

Sua influência foi aceita por uma natureza aparentemente dócil que alguns familiares (invejosos?) costumavam apelidar de fraca. Seria medo de enfrentar o mundo que chamavam mais real, diferente daquele existente no seminário, pago com alegações piedosas da tia remediada? Depois dos estudos, havia a promessa sacerdotal, defendida e preservada de tantos males que afligem a humanidade. Já havia a consciência do alto preço a pagar, quando escolhido  caminho cuja maior glória e compensação seria o reino dos céus, tão claramente definido e separado do purgatório e do inferno, sinônimo de danação e castigo eterno.

Pouco a pouco, as certezas absolutas foram sendo minadas; os estudos de filosofia e teologia criaram dúvidas, inicialmente chamadas de normais, crescentes e desassossegando a natureza antes pacífica e conformada. Revolta manifesta devagar, porém constantemente preocupara mestres interessados na vocação louvável, a ponto de chamarem a tia patrocinadora de estudos caros e longos. Decepcionada, decidiu aguardar as férias, propondo um conselho de família. Afinal, os pais e outros considerados sábios e experientes deveriam opinar, aconselhando a chamada ovelha no caminho errado de não desgarrar-se do rebanho entre os eleitos.

O dócil seminarista fora inoculado pelo veneno da dúvida. A fé que acreditavam inabalável (inclusive ele mesmo) oscilava, não somente na extremidade exposta a ventos e tempestades; também a base julgada sólida foi infectada. Não ajudaram conversas com colegas e mestres jovens e menos conservadores, tampouco argumentos de que a verdadeira crença deve ser flexível; quando rígida, poderia quebrar-se sob a força de tempestades temidas mas inevitáveis.

Um dos professores jovens, respeitado por seriedade e competência, lembrou que todos podemos criar um jardim interior, cuidando para não deixar crescerem ervas daninhas, arrancando-se por ignorância plantas novas e desconhecidas, prováveis árvores futuras, quem sabe, promessa de flores e frutos ou, no mínimo, sombra acolhedora. Sofreu uma certa segregação dos doutos e donos de verdades absolutas, além de rótulos de romântico subversivo.

Tanta gente envolvida na escolha de uma estrada, esquecendo que ao caminhante cabia a decisão final e definitiva por um destino que seria somente seu. A família atrapalhava mais do que ajudava e a generosa tia usava e abusava do direito de reclamar da ingratidão, mesmo representando sem talento o papel de vítima de influências terrenas sobre seu protegido, não esquecendo de apelar para a nefanda presença de demônios ou anjos decaídos. Tanta pressão parecia vã, porém deram ao futuro servo de Deus um prazo para refletir: até o final das férias. Confiavam nos dois meses até a desejada volta ao seminário. Continuavam idas às missas dominicais, a bênçãos em noites marcadas no calendário dos católicos locais, todos confiavam em poderes sobrenaturais, somados às investidas de gentes mais que interessadas na presença de um luminar da igreja, nunca antes existente no clã.

Dei-me conta, de repente, que a estória do seminarista é semelhante à minha, pois me lembrei que aquelas férias chegaram ao fim mais depressa do que o esperado. As idas às missas e bênçãos foram rareando, o terço foi esquecido diante do nicho com imagens em casa. Havia outro diante do pequeno altar em casa da tia generosa e crente na certeza do investimento feito para os santos da corte e, quem adivinharia? Para sua velhice não muito distante. A ela o futuro reverendo deveria suas benesses, seria moradora na casa paroquial dos seus mais belos sonhos. Ruíram por terra.

O caminho foi diferente, talvez mais árduo do que o prometido pela tia devota. A Santa Madre Igreja perdera um sacerdote, descrente de sua própria força para cumprir as exigências de sua função de pastor de almas.

Não foi uma solução piegas, “sentimentaloide”. O ex-seminarista pacificou-se por dentro, fez com que aceitassem seus argumentos: melhor um ser humano bom cristão e feliz do que um padre amargurado pela certeza de que representaria um papel de canastrão.

Houve tropeços, e muitos, no caminho escolhido: um casamento infeliz, piorado pela ausência de filhos que não vieram. Viuvez precoce, solidão enfrentada, algumas buscas de companheira que preenchesse vazios, acontecidos e muitos…

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