Procurando alguma coisa?

Obras de Amigos

A Anta – Maria Alice Fernandes

Brasília, 11/04/94, às 22h10min

Encontrar Tupaciguara no mapa das Gerais é tarefa para detetive: lá paras bandas do Triângulo Mineiro, um pontinho do lado de ‘Berlândia; cerca de 8.000 habitantes, produziu uma cidadã do mundo, Marlene, minha amiga, cognominada Anta quando me enfureço ou simplesmente quero arreliá-la.

Pois é, de Tupaciguara a Los Angeles – CA foi um caminho e tanto, nem duvidem.  Caminho de uma mulher forte que é uma romântica incurável, um intelecto poderoso que se considera menos educado porque não possui um diploma universitário (ai, que irritação que essa mulher me causa, às vezes!); uma criatura de coragem maiúscula que se considera frágil; um coração sem tamanho, uma mulher fantástica, minha amiga, a Anta, a Perua, a Múmia Paralítica, a Parva Fresca, a Mulher Marlene.

Sabe quando nos conhecemos?   Pois foi no dia do meu casamento (o primeiro), lembro até da cor do vestido dela – laranja – do largo sorriso, do meu cônjuge apresentando “essa é uma grande amiga minha”, e eu pensando “se é grande amiga, por que não fui apresentada ao longo de dois anos de namoro?”

Depois disso vieram os papos intermináveis, saídas em conjunto, grupo de teatro amador, aulas de pintura (Gèza Heller e Catarina, duas criaturas divinas), filhos que nasceram, anos passando, conversas maravilhosas, outras nem tanto, testemunhamos juntas tanta coisa, nos socorremos, choramos mágoas, rimos demais, idas ao teatro (uma paixão, lembra?), almoço quase diário no restaurante vegetariano, casamento desfeito (o meu), desilusões amorosas (mais dela), tanta coisa compartilhamos, tanta coisa…

Senso de humor: foi e sempre será o nosso elo mais forte de ligação.   Minha ironia às vezes a chocava, mas o peculiar, fino senso de humor dela nunca falhou em me fazer ver o lado cômico das situações mais negras, me fazer olhar as mesmas situações de um ângulo menos tenebroso, menos capricorniano, eu diria.

Somos tão diferentes e tão semelhantes!  Sou horrivelmente organizada e ela é caótica; sou terra-a-terra e ela tem a cabeça nas nuvens – quando lhe convém; ela é romântica como rosa-chá e eu como um cacto; sou malcriada, de resposta pronta, e ela é tranqüila, incapaz de fazer uma grosseria (e depois se morde de raiva porque não cuspiu no olho do ou da infeliz).   Em comum, temos uma insofismável coragem de enfrentar a vida, uma visão mais ampla de mundo que a maioria, talvez.  E um profundíssimo respeito pela outra.

Depois que ela emigrou para os Estados Unidos, sinto uma falta danada da minha âncora; engraçado é que ela nunca pareceu, até agora, se dar conta de quanto eu dependia da calma dela: a comedora-de-fogo necessitava do equilíbrio da fonte de água cristalina.   Por sermos tão diferentes, as qualidades de uma contrabalançavam os defeitos da outra.

Mas a menina tímida de Tupaciguara, quando mulher feita, aos trinta e três anos resolveu desafiar o mundo e sua família (mineira e tradicional, pleonasmo) e bancar ter um filho sem pai, e a lutadora criou esse filho inteiramente só; tinha mesmo é que procurar seu caminho em campos de horizontes mais amplos.

Tudo muito certo, tudo muito bem, se não fosse um pequeno problema: a Anta tem preguiça de escrever.   Há mais de quinze anos estamos longe, mesmo tempo em que me descabelo para manter uma correspondência peripatética com a indigitada.   De uma assentada, ela levou mais de dois anos sem escrever…   Quando perco a paciência, mando um formulário de múltipla escolha, do tipo “marque com um X a opção que mais se assemelha às situações vividas”.   Nem assim, a Indigna Senhora condescende em responder.

Saudade mata, Mulher Marlene, faz a gente definhar, amofinar…

P.S.: A Anta, a Mulher Marlene faleceu em 25 de fevereiro de 2010, vítima de acidente vascular cerebral (AVC).

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