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Contos

Carro Velho

O meu pai adorava um carro velho, mas não pense que era na condição de colecionador, cujas relíquias dão gosto se ver e são usadas apenas em ocasiões especiais ou para posar para filmagens e fotos. O meu pai adorava um carro velho e caindo os pedaços, desses que nem o ferro velho aceita, esse era o carro considerado ideal por ele para usar nas suas atividades diárias. Quando ele via um carro desse tipo ele se transformava, os seus olhos brilhavam e ele sorria, ia logo se aproximando, examinando a “preciosidade”, ia puxando conversa com o dono, perguntava se estava à venda e por aí começava mais uma dor de cabeça para a família. Ela não sossegava até comprar aquele carro ou outro semelhante, caso não conseguisse convencer o proprietário a vender aquela “antiguidade” para ele. Os vendedores de automóveis, quando tinham um carro velho e difícil de ser vendido, iam oferecer para ele, era uma venda quase certa, a não ser que o carro usado por ele naquela ocasião fosse mais velho e derrubado.

Certa vez o meu pai comprou um carro tão velho, mas tão velho e caindo os pedaços, com um aspecto tão fantasmagórico, que as minhas irmãs Alice e Cristina, sarcasticamente, deram-lhe o apelido de Janaína. Esse carro causou muitos problemas e transtornos para todos nós, ultrapassou todos os limites suportáveis pela família. Quando o meu pai ia nos deixar no colégio, nós pedíamos para ficar alguns quarteirões antes, a fim de evitar que os nossos amigos vissem Janaína e nos transformassem em motivo de gozações e piadas. E nos preferíamos voltar de ônibus a ser apanhado por ele dirigindo aquele monstrengo. Quando ele deu aquele carro velho, por falta absoluta de alguém interessado em comprá-lo, foi um alívio geral para a família. Acho que a mamãe e as minhas irmãs, durante muito tempo, pagaram promessas pela graça alcançada.

O maior problema de Janaína era na hora de ir para o colégio, logo após o café da manhã, ela tinha que ser empurrada por longos trechos para o motor funcionar. Depois que o motor funcionava o problema era chegar ao colégio, ela costumava quebrar na metade do caminho, geralmente quando nós tínhamos prova no primeiro horário. Como papai conhecia muita gente, nestas horas sempre aparecia um amigo dele que nos dava carona até o colégio. Durante o trajeto eles indagavam quando papai ia deixar de comprar “ferro velho” e nos apenas ríamos, um pouco acanhados, sem saber o que dizer, olhando cada detalhe daquele carro novo, tinha até rádio! Eu ficava pensando comigo mesmo: é mais fácil um camelo passar no fundo de uma agulha do que meu pai comprar um carro que preste. Eu nem pensava em um carro zero, meus sonhos eram bem mais modestos, desejava apenas um que não nos deixasse constantemente no meio do caminho e não fosse necessário empurrar para ele funcionar. Eu pensava sem nada dizer, meu pai só comprará um carro novo no dia de “São Nunca”, como minha mãe costumava dizer. No restante do dia Janaína não dava muito trabalho, funcionava com um pequeno empurrão, mas continuava a nos deixar no meio do caminho, de vez em quando.

O engraçado é que o meu pai não esquentava a cabeça com os problemas ocasionados pelos seus carros velhos, muito pelo contrário, ele parecia se divertir com os transtornos ocasionados pelas suas “relíquias”. Na sua roda de amigos ele ficava a contar as peripécias da semana, provocadas pelas suas “antiguidades”. Cada transtorno ocorrido era contado com riqueza de detalhes, nada era esquecido, acho que herdei dele essa mania de escrever sobre os fatos que marcaram minha vida.

Um dos seus carros velhos saiu até nas primeiras páginas dos jornais da nossa cidade. Não sei como classificar o motivo que provocou a foto e o noticiário, mas vamos deixar os detalhes de lado e sigamos adiante. Na época do fato que vamos relatar, o ponto central da cidade de João Pessoa era conhecido como “Ponto de Cem Réis” e não existia o viaduto, construído muitos anos depois. As ruas do centro da cidade tinham sentido duplo, meu pai estacionou o carro na Rua Padre Meira, na descida no sentido dos prédios do antigo Correio e do Quartel da Polícia Militar, precavendo-se para o caso de apresentar algum problema para fazer o motor funcionar, fato muito comum nos seus carros, a maioria deles nós tínhamos de empurrar para fazer o motor funcionar, conforme já salientei antes. O motor velho e cansado não teve compressão para segurar o carro, que foi descendo lentamente, pouco tempo após meu pai se afastar, até se chocar contra a parede do prédio onde ficava o cartório. Foi um tumulto geral no centro da cidade, todos queriam ver o carro que desceu a ladeira sozinho e se chocou contra a parede do cartório. Nenhum carro foi atingido e ninguém foi ferido, naquela época existia pouco trânsito na rua e as pessoas se afastaram quando viram o calhambeque deslizando na direção delas e sem motorista.

Meu pai foi comerciante, gostava de posto de gasolina. Foi proprietário de alguns postos na cidade de João Pessoa, ele sempre comprava e vendia posto de gasolina. Em algumas ocasiões ele tinha três postos, mas vendia qualquer um ou os três, caso recebesse uma boa proposta. Entretanto, um dos motivos que levava os seus carros a ficarem parados no meio do caminho era a falta de combustível.

Um fato merece registro: eu estava pagando um consórcio para aquisição de um carro novo, pois tinha ficado com pavor de carro usado, devido aos fatos aqui relatados. Nas últimas prestações, ainda não tinha recebido o carro, tive dificuldades financeiras e necessitei vender o consórcio. Meu pai liquidou o consórcio e me comprou o carro antes da concessionária entregar o veículo, propiciando os recursos que eu necessitava. Ele utilizou este carro durante vários anos, contrariando as previsões de que seria vendido sem ser usado. Deste dia em diante deixei de acreditar em “São Nunca”. Parentes e amigos acharam que ele finalmente tinha mudado, mas foi apenas um ato de ajuda para um filho, foi o único carro zero que ele comprou durante toda sua vida. Esta era uma das muitas facetas de Aprígio José Fernandes, meu pai e meu amigo.

Marcos Antônio da Cunha Fernandes
www.marcosfernandes.org
João Pessoa, julho de 2006.

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