Procurando alguma coisa?

Obras de Amigos

Rotinas – Maria Alice Fernandes

 

Brasília, 09/05/94, às 22h55min

Estou numa das minhas fases sombrias, perdi o sono (perdi? nem achei ainda!),
resolvi escrever, talvez isso me acalme.

Nessas últimas semanas, engoli mais sapos no meu trabalho do que me lembre em
toda a longa vida profissional. Procuro digeri-los, em nome de um projeto que não
pode ficar inacabado depois de mais de um ano de luta, e já tão perto da implantação.
Será que vale a pena?

Por muito menos, em outras ocasiões, mandei diretores e presidentes de grandes
estatais, ministros e seus secretários-gerais catar coquinho. Tornei-me conhecida, no
meio em que atuo, por ter pavio curto. Sabe de que mais? Acho que estou perdendo a
vontade de brigar, deve ser o inexorável processo de envelhecimento que me faz perder
o gás.

Prudência? Brincadeira… Isso tem outro nome: acomodação. E me faz mal, me
sinto um caco, tenho tido palpitações, falta de ar, dores no peito, desânimo, desânimo,
desânimo. Sábado passado saí com a Ruivinha, fomos ao comércio aqui da quadra, e
nem tinha andado cem metros e me deu um medo pânico de cair ali mesmo. Mas
consegui controlar a falta de ar, o suor frio, os joelhos que pareciam gelatina.

Preciso voltar ao cardiologista, embora saiba de cor e salteado a cantilena: deixe de
fumar, faça exercícios, ande durante uma hora por dia, leve uma vida mais saudável…, e
tome etc.

‘Tá certo, doutor, mas vamos trocar os papéis? O senhor vai lá para casa, acorda
cinco e trinta da matina, vai para a cozinha fazer o café da manhã das duas pequenas e,
se não tiver empregada (o que é o mais freqüente), providenciar o almoço também.
Enquanto isso, não se esqueça de colocar a roupa na máquina de lavar, ponha água nas
plantas, lave a varanda por causa de xixi e cocô da bendita cadela, corra para arrumar as
camas e limpar os quartos, dê um jeito nas roupas, sapatos e badulaques espalhados.
Quase oito horas? Que horror!!! Chuveiro rápido, que roupa usar? Qualquer uma, a
primeira que chamar a atenção dos olhos, quando abrir a porta do armário.

Está saindo assim, sem conferir torneiras e janelas, viu se está tudo em ordem?
Cadê o raio das contas que têm que ser pagas hoje? Vai ter que passar no Banco, o
talão de cheques está acabando. Olha o ônibus, corra, que se não pegar esse aí, o
próximo só daí a vinte minutos, vai chegar muito atrasado.

E no escritório, que maravilha! Tudo o que os “lá de cima” não sabem a quem
encaminhar e como resolver “aterrissou” na sua mesa, que está uma verdadeira horta,
uma plantação de pepinos e abacaxis.

Hora do almoço! Corra para casa, a salada ainda tem que ser terminada, esquente a
comida, ponha tudo na mesa, agora tire tudo, arrume a louça na pia, pode ter um ataque
de raiva, mande as meninas lavar a louça (vai se arrepender uns minutos depois, mas
mantenha-se firme). Aproveite enquanto elas se divertem quebrando uns copinhos e
tire a roupa da máquina, estenda no varal, ainda dá tempo de passar desinfetante nos
banheiros, cinco minutos é o suficiente para escovar os dentes, retocar o batom (esqueci
que o senhor não usa), passar um pente nos cabelos e sair esbaforido, porta afora, que se
não pegar esse ônibus…

Mais uma sessão de horticultura e lá pelas sete da noite o senhor estará de volta ao
sacrossanto recesso do lar, pronto para fazer o jantar. A rotina é a mesma descrita para
o almoço, com algumas variações: tenha juízo e lave a louça o senhor mesmo.

Se ainda tiver fôlego, é melhor ir adiantando o almoço de amanhã. Mas não se
esqueça dos noticiários da televisão, que é a hora que as meninas escolhem para: a)
brigar entre elas, aos berros; b) comunicar-lhe que você se esqueceu de fazer alguma
coisa extremamente importante; c) brincar com a cadela, de preferência em frente ao seu
campo de visão (e não se dê ao trabalho de aumentar o volume do aparelho, elas
conseguem gritar ainda mais alto).

Tente ir dormir antes da meia-noite, mas anote mentalmente que amanhã é dia de
passar aspirador na casa toda, e de faxina em pelo menos um dos banheiros (pode fazer
isso enquanto toma banho, por que não?).

O senhor está fumando, é? E esqueceu que hoje era dia de jogar tênis no clube?

Pimenta nos olhos dos outros, meu caro doutor, é refresco!

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