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Extrato de um Diário – Maria Alice Fernandes

Extrato de um Diário -­‐ Uma vingança Planejada

PARTE I – ANTECEDENTES

Brasília, 23 de Agosto de 1994.
À Doutora YYY
Taguatinga – DF

Senhora Advogada,

Tendo chegado a meu conhecimento que em breve dará entrada no Fórum de Taguatinga a terceira ação de pagamento de aluguéis atrasados do Sr.XXXX,de quem tenho a desdita de ser fiadora,solicito-­lhe providências no sentido de procurar sustar o abuso de que venho sendo vítima, ao longo do último ano. Para que V.S. possa melhor basear minha defesa, passo a lhe expor os antecedentes da intricada situação.

1. O indivíduo de quem sou fiadora foi meu empregado durante alguns anos,tendo trabalhado como faxineiro em apartamento que mantive no Rio de Janeiro,por certo período. Com a morte de pessoa de minha família, decidi deixar definitivamente o Rio e, condoída da situação daquele indivíduo -­‐ marginalizado e escorraçado pela família, em razão de sua preferência por parceiros do mesmo sexo -­‐ convidei-­‐o a vir trabalhar em minha casa em Brasília. Se me perguntarem a razão de tal gesto,direi que é própria do meu caráter um tanto quixotesco a tendência a simpatizar com a causa de minorias perseguidas.

2. Por algum tempo, o comportamento do Sr.XXXX esteve dentro de limites aceitáveis,embora ocasionalmente causasse embaraços a mim e às minhas quatro filhas, pelos trejeitos exagerados. Mas comecei a notar que minhas roupas e mesmo joias estavam sendo usadas em suas saídas noturnas; mantimentos sumiam com uma
velocidade impressionante. Por último,notei que minha filha mais nova,na época com uns cinco anos,tinha medo de ficar sozinha com ele.Pude entender a causa quando descobri ferimento no braço da pequena, de uma  unha(que o referido senhor as usava bem compridas)enterrada na carne.

3. Esta foi realmente a gota d’água, para uma pessoa que se considera extremamente tolerante.Despedi o Sr. XXXX, que alegou não ter para onde se mudar e solicitou permissão para continuar morando em minha casa, até arranjar um emprego que lhe permitisse ter um lugar para morar. Permissão concedida:como iria deixar alguém no olho da rua? Arranjado o emprego,lá foi o Sr.XXXX, de malas e bagagens. Só que as malas eram minhas.E nunca me foram devolvidas sob a alegação de que haviam sido roubadas.

4. Transcorridos mais uns tantos meses, nem sei precisar quantos,lá me aparece ele outra vez, pedindo-­‐me fiança para alugar um pequeno apartamento numa quadra comercial.Cedi contra a vontade e indignação de minhas filhas mais velhas,que não suportam o sujeito.Mas tive pena do infeliz, é muito azar ser feio como a desgraça e homossexual explícito num país como esse,cheio de preconceitos mais ou menos disfarçados.

5. Depois disso não tive mais notícias dele,nem fui chamada a pagar suas contas.Até um dia em que tal “Paulete” se faz anunciar pelo interfone do prédio,e como respondi que não conhecia ninguém com esse nome, o porteiro, quase sufocando de riso, esclareceu que se tratava do inefável Sr. XXXX. A figura que me apareceu à porta me deu vontade de rir… Ou de chorar de piedade: saia longa de jeans,sapatos pretos de verniz com saltos altos e finos, maquilagem carregada, uma patética caricatura de mulher.Assinei outro contrato de aluguel,como fiadora,sem o ter lido e examinado,um erro imperdoável numa profissional capaz de examinar contratos internacionais de financiamentos. Faria qualquer coisa, naquele momento,para não ter que suportar por mais tempo aquele arremedo mal produzido de mulher na minha frente,tão grande o meu constrangimento.

6. Em outubro ou novembro do ano passado,comecei a receber telefonemas de um Sr.Arimatéia, identificando-­‐se como proprietário do imóvel e me solicitando pagar o aluguel do Sr.XXXX,àquela altura atrasado dois meses.Como nem sabia o endereço,o proprietário mesmo o forneceu,para que eu pudesse entrar em contato com o devedor principal. Escrevi uma carta,mandei um telegrama-­‐e nada de resposta.E o tal Sr. Arimatéia telefonando todos os dias. Resolvi pagar para me livrar da amolação.

7. Em fevereiro deste ano,mal volto das férias e mais telefonemas do Sr.Arimatéia. Sempre me dizendo que achava uma injustiça que eu tivesse que pagar um aluguel por um imóvel do qual não usufruía, mas me cobrando assim mesmo. Objetei que se eu continuasse honrando os compromissos do Sr.XXXX, ele, o Sr. Arimatéia,não teria como entrar com uma ação de despejo por falta de pagamento. Propus-­‐lhe que entrasse com a referida ação, que me comprometia a saldar a dívida– desde que o Sr.XXXX fosse despejado. Estranhamente,depois disso, recebi dois ou três telefonemas de uma senhora que se apresentou como a esposa do Sr.Arimatéia, me perguntando que providências eu iria tomar para fazer o Sr.XXXX (ou devo dizer Paulete?) desocupar o imóvel. Minha resposta foi sempre a mesma: não sou eu quem deve tomar providências, mas os  senhores.

8.Habituada, por força da atividade profissional,ao exercício da lógica, faço-­‐lhe a seguinte indagação:a quem interessaria manter-­‐me presa a um contrato por saber que vou terminar tendo que pagar o aluguel de um desqualificado,para manter meu nome -­‐ e único patrimônio-­‐ limpo?

Use as informações da maneira que lhe pareça mais adequada,confio na sua capacidade e seriedade profissional.

Atenciosamente, etc.

PARTE 2 – PLANEJAMENTO

Brasília,26/08/94

Terminei agora um relatório que me tomou dois dias para fazer,um cipoal de dados,informações, tabelas e gráficos. Ufa!!! A cabeça está dando voltas,decidi descansar escrevendo.Ainda mais que com a umidade relativa do ar por volta dos 15% (a do Saara é maior),o cansaço se agrava exponencialmente.

Notou a missiva para a advogada? Pois é,não poderia me queixar de ter uma vidinha insossa,poderia? Mas agradeceria aos fados, aos céus, aos deuses, se não me brindassem com tantos problemas,tão amiudadamente, com tanta frequência… Nem dá tempo de respirar!

Vou continuar a pagar as dívidas da “Paulete” até quando? Apesar de indignada, numa noite dessas me diverti muitíssimo arquitetando uma vingança arrasadora contra aquela desvairada.Como conheço muito bem a louca, seus medos e faniquitos, imaginei um plano terrorista que considero infalível.

Trata-­‐se do seguinte: entro em contato com alguns adolescentes ou crianças que morem nas proximidades da inefável, e os convenço a caçar uns sapos(o cretino tem terror,pânico dos pobres batráquios),de tamanhos e procedências variadas, não importa.Pago R$1,00 por mercadoria entregue no local(a casa dele, claro!), até um limite de 50(cinquenta) unidades,desde que sejam os bichos soltos dentro da casa em questão, e conferidos os números, antes, por um meu preposto (não vou mais ser tola de confiar em alguém, tá?).Também não seria difícil a entrega, porque lá funciona um terreiro de umbanda,portanto, deve ser um local mais ou menos público. Isto na primeira semana.

Semana seguinte, meus fornecedores deverão procurar ratos(camundongos,ratazanas,quanto mais asquerosos melhor),ao mesmo preço por unidade, desta vez em menor quantidade, 25(vinte e cinco) está de bom tamanho. O sistema de entrega pode ser um pouco diferente, isto é,os roedores podem ser soltos no quintal, desde que fique assegurado que pelo menos uns dez ou doze deles tenha acesso às dependências internas da casa.

Na terceira semana a “mercadoria” passa a ser baratas,item facílimo de encontrar, há lixo espalhado por todos os lados, por aquelas bandas. Mas com uma condição de aquisição: devem ter, pelo menos, 3 a 4 cm de tamanho.Pela facilidade de obtenção, o preço será bem menor, isto é,R$0,30 por unidade, o que poderá ser compensado pela quantidade -­‐ para não diminuir a renda auferida pelos vendedores,a esta altura já incorporada ao orçamento familiar -­‐ desde que não ultrapasse o limite de 120(cento e vinte)formosas,
portentosas e bem nutridas baratas. Entregues em mãos do próprio em caixas, muito bem apresentadas (encarrego-­‐me de fornecê-­‐las),todas ao mesmo tempo.

Se,na quarta semana, “aquela coisa” ainda não tiver fugido em pânico para o interior da Bolívia, aplica-­‐se o golpe de misericórdia: uma cobra de, no mínimo,uns 80cm, pode ser não venenosa,não faz mal, o importante é que tenha aspecto dos mais ameaçadores… Entrega em caixa especial de madeira,daquelas com furinhos–para não incomodar demasiado o inocente animal –,e que se não for aberta pelo destinatário (a esta altura dos acontecimentos já completamente alerta para o perigo de receber encomendas), deverá sê-­‐lo pelo portador.Pago até R$25,00,incluindo a entrega, sendo a caixa por minha conta,e o portador deve ser alguém acostumado a correr, porque vai precisar “botar sebo nas canelas”.

Não é um plano porreta? Feitas as contas,iria gastar um bocado de dinheiro, mas valeria a pena, pela satisfação que me daria… Além do mais,comparando com o aluguel que estou pagando por ele, até que sai barato!

Bem, posso não por em prática, mas já foi maravilhoso pensar sobre o assunto, melhorou sensivelmente meu astral, dei boas gargalhadas ao imaginar os gritinhos de medo e nojo. Maldade? Que nada! Legítima defesa, isso sim.

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