Procurando alguma coisa?

Obras de Amigos

Em busca de uma estória – Valdemar Queiroz

Para quem gosta de contar casos, verdadeiros ou não, o começo e o fim são os mais difíceis. Dada a partida, parece que a coragem escondida por timidez ou medo de ser achado falante demais desperta e vence barreiras. Sobe-se ladeira, escorrega-se por ela abaixo, caminha-se por planuras onde monotonia pode mandar.

Ouvidos atentos motivam; tudo melhora quando se está perto de um fogo, seja de uma lareira ou ao redor de pedaços de madeira seca queimando com seu ruído tão gostoso. Se aparece de comer e de beber generosos, animação aumenta, mesmo quando alguém da roda interrompe para um dito malicioso ou põe em dúvida a verdade da narrativa.

A voz de quem conta deve ser baixa, de preferência grave e nunca monocórdia. Ignoram-se os palpites, até os inteligentes e cabíveis, os mais perigosos. Sorriso de compreensão faz de conta que acréscimos ou cortes bobos não atrapalham, podem ser levados em conta com simples acenos de cabeça.

As primeiras frases já devem provocar curiosidade. Não se oferece logo o ouro para os bandidos, tampouco se antecipa um desfecho que o próprio contador às vezes ignora quando a invenção é do momento.

Cabe encher linguiça, correndo o risco de ser denunciado por ouvinte caturro e metido a sabichão. O protesto vem agressivo, por isso mesmo o sorriso do contador mostra o perdão.

Nunca lembrar o “era uma vez…” das estórias infantis, uma vaia é inevitável.

O personagem foi traído pela mulher e recusou-se a matar a infiel e o sedutor; já desconfiava dos dois, mas não incluía o dito na lista de chamados amigos. Não houve o conhecido flagrante de adultério que poderia ser armado; princípios morais, religião e razões variadas impediram o duplo homicídio.

“O cara gostava de ser traído? Fazia parte da confraria dos mansos e convencidos”. Interrupção grosseira de um dos que já abusaram da bebida.

“Não foi o caso. Houve parente que colocou revolver nas mãos do ofendido, alegando que não seria crime, apenas direito à defesa da honra. Causa ganha em qualquer tribunal, bastava escolher bem os jurados, homens de preferência”.

Mesma na ficção, pode ser complexo mudar o caminho dos personagens, quanto mais quando os fatos foram verídicos. O narrador não pode pretender-se onipotente, ainda que os ouvintes assim creiam e esperem. Todo caso tem, no mínimo, duas versões. O passar do tempo acrescenta mudanças em fatos, transformados ao sabor de ventos, brisas ou tempestades; quando a coisa cai no domínio público, multiplicam-se pontos de vista quase sempre conflitantes.

Uns diziam que a mulher se recolhera a um convento de arrependidas, considerava-se morta para o mundo onde fora infeliz. Poucos afirmavam tê-la visto em uma casa de mulheres da vida, à beira de estrada movimentada, bem longe do~ lugar onde deixara o marido; sua fuga fora um desespero, presenciado por alguns vizinhos curiosos. Uma versão mais romântica afirmava que a infiel juntara-se a um fazendeiro rico, depois de um casamento em país latino americano onde o dinheiro do ricaço pretensamente legalizara a união que seguia feliz como prêmio para a desgraça que se abatera sobre uma pobre mulher temente a Deus.

O marido mudara de cidade, felizmente não houvera filhos. Os machões amigos e conhecidos não lhe perdoaram a covardia, passaram a negar-lhe o cumprimento, era impossível permanecer em clima tão hostil.

Mas… Havia quem juras BNHe que o calmo senhor traído jurara vingança requintada. A morte pura e simples dos culpados não seria castigo suficiente para a afronta, agravada pelo fato de todos o considerarem modelo de cidadão e marido.

A curiosidade e os disse que disse foram diminuindo com o passar do tempo, além da substituição do caso por acontecimentos que sempre causam interesse em cidades menores onde a vida alheia é dissecada em bares, rodas de jogo e até nas igrejas frequentadas por mulheres sem muito que fazer.

Um silêncio denso, mais uma rodada de bebidas e uma pergunta: “O caso é inventado ou aconteceu de verdade?”

Como não houvesse resposta, todos os olhos se fixaram no contador, feliz com o suspense criado e a pausa alongou-se para aumentar a expectativa.

A cidade não merece destaque como cenário, não combina com tragédia que não houve. Poucos louvaram o bom senso do marido, superando o clichê de que ofensa à honra se lava com sangue. Quando o assunto era lembrado, voltando de passado não muito distante, a maioria ainda condenava a covardia do marido agredido em seu bem mais precioso.

Adultérios continuaram a acontecer; os homens eram encarados como garanhões competentes, orgulho mal disfarçado de frentes amplas. As mulheres transgressoras de mandamentos enraizados não comoveram solteironas ou mal amadas, nem os habituados ao aperitivo antes do almoço e do jantar nos botequins concorridos. Eram viventes da periferia, ou moradoras das ruas consideradas menos nobres.

Um detalhe chamava a atenção de visitantes ocasionais: dois cemitérios se erguiam em colinas, distantes uma da outra. O mais antigo era o menos visitado; mal cuidado, mato crescia entre sepulturas antigas, quase todas de ex-viventes pobres e mesmo os mausoléus pretensiosos, careciam de cuidados de um velho coveiro reumático. Ali jaziam defuntos cujas famílias não mais viviam ou se mudaram para outros nortes. O mais novo atraía visitas de zelosos descendentes, limpando e florindo mármores e granitos, usados nas imitações de góticos e barrocos de gosto bem duvidoso.

“Meu bisavô está enterrado no mais antigo. Foi o maior pau duro durante a vida; seu apego ao dinheiro fez história, deve ter virado pó há décadas. Quem vai levar velas ou flores para defunto tão ruim? Deve pagar sua ruindade nas profundas dos infernos…”.

Uma talagada tomada de vez encerrou o discurso de um dos ouvintes, bem atento quando os cemitérios entraram na conversa que se alongava. Uns raros olhares de reprovação foram mais eloquentes do que os palavrões engolidos por todos. O narrador colheu os louros do seu sucesso quando os olhares e o silêncio da roda se centravam nele; a curiosidade era mal disfarçada.

Superstições têm sido constantes e variadas na trajetória dos humanos. Alimentadas por mitos e rituais, têm nos cemitérios um dos cenários mais comuns para o surgimento e proliferação de lendas; algumas atravessam milênios ou séculos, tal a sua força de convencimento para crédulos. Até os que se dizem céticos balançam em suas convicções arraigadas.

A crônica das visagens, as temidas almas penadas, surgidas pelas colinas dos mortos da cidade, não era longa nem assustadora, para desgosto dos contadores de casos fantásticos. A tradição do folclore local remontava a três ou quatro gerações de ancestrais dos moradores. Nada havia de escrito, apenas um ou outro autor de literatura de cordel incluía estórias, consumidas pelos caipiras, compradores fixos nos dias de feira na praça maior da cidade. Predominava a transmissão oral, advinda das fazendas e roças e chegava com força diminuída no meio urbano. Acréscimos e cortes aconteciam, os exageros sempre valiam mais. Amas e as modernas babás usavam e abusavam dos relatos para apressar o sono de crianças rebeldes ou agitadas na hora de dormir.

Começaram a surgir boatos sobre a volta de almas penadas entre jazigos abandonados do cemitério antigo. Era o mais distante e nenhum dos apregoadores de suas bravatas ousou tirar a limpo o que achavam mentiras de pobretões moradores lá de perto. Muitos voltavam pra casa cheios de cachaça barata, consumida em doses fartas, principalmente nas noites de sexta-feira e sábado. Houve quem afirmasse movimento incomum durante a semana inteira. Imaginava-se criação dos cachaceiros e famílias crédulas.

Alguém com mais dinheiro e prestígio com a polícia solicitou uma visita da polícia, poderia ser durante o dia. As almas deixariam sinais de suas aparições? Velas foram acesas nas proximidades, de preferência antes do pôr do sol; a hora da Ave Maria assegurava interferência da Virgem Santa, Mãe de Deus e protetora dos aflitos. Beatas improvisaram novenas e trezenas, jejuns repetidos e comunhão quase diária. Afinal, eram as guardiãs dos mistérios da fé.

Poucas visitas de representantes das autoridades constituídas concluíram que um verdadeiro matagal cobria a maior parte do solo sagrado. Uma verba municipal seria votada em sessão da câmara de vereadores, sem urgência, para a limpeza da área. Projetos importantes para o bem estar da comunidade mereciam clara preferência.

“Seu caso está mudando de rumo. Começou com traição não devidamente castigada, agora chegam almas do outro mundo para encher nossa paciência”.

Sem resposta, porém sentia-se no ambiente algo de tensão que o sobrenatural sempre provoca. Alguém lembrou de ativar o fogo; tem o poder de trazer luz e afastar maus espíritos vagantes em busca de preces.

A pequena verba para limpeza do velho cemitério teve de esperar que os chamados trâmites legais fossem observados. Vereadores não se entendiam, a oposição achava que projetos mais necessários enchiam a pauta e almas do outro mundo podiam esperar. Além disso, as reclamações dos assombrados diminuíram; ou bebiam menos, ou as visagens mudarem para outro lugar menos maltratado. O prefeito, interessado em sua reeleição, tentou apaziguar discordâncias entre oposição e governo, sem o sucesso desejado. Afinal, contava com os votos dos moradores das redondezas do cemitério.

“Já desviou o assunto para as mazelas dos políticos? Nenhum de nós está a fim de estragar a noite escutando conhecidas bandalheiras de líderes de titica”.

Olhares de desprezo, agora não somente do contador, fulminaram o intrometido sem convite.

Perdera-se o fio da meada, já que atalhos nada tinham a ver com adultério não adequadamente vingado? Ou não se achava um desfecho para encerrar o serão? Felizmente bocejos não aconteceram, era sábado e ninguém levantava cedo no esperado domingo preguiçoso, rotina apenas quebrada por amistoso de futebol entre os times de casados contra os solteiros, estes ganhadores habituais. Ainda não ostentavam barrigas crescentes com a cerveja e os dotes culinários de sérias e fieis esposas.

Tinham esquecido de alimentar o fogo, as chamas ficavam cada vez mais fracas; as brasas maiores brilhavam intensamente.

“Limparam ou não o cemitério antigo? Liberaram a verba ou foi desviada para os bolsos do autor do projeto e seus apaniguados?”

O susto foi grande para os encarregados da limpeza. Num dos cantos mais escondidos pelo matagal, descobriram um mausoléu diferente de todos os existentes até então. Tinha a forma de um baú enorme, revestido de cimento grosseiramente jogado no exterior da sepultura tosca. A lápide de mármore branco chamava a atenção pela inscrição gravada em caracteres negros: “Aqui jaz uma adúltera. Enterrada viva pagou por sua traição a um marido delicado e honesto.”

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