Procurando alguma coisa?

Contos

Gabação

As noites estão frias neste inverno, tem chovido e ventado bastante, o que aumenta a sensação de frio. Fico em casa sem coragem para sair, mas não posso me sentar na varanda, olho a cidade da janela da sala. Nalguns momentos os pingos de chuva batem nos vidros da janela e escorrem preguiçosamente, noutros momentos eles batem com força e escorrem velozmente, dançam de acordo com o volume da chuva a cair sobre a cidade. Apago a luz da sala para evitar o seu reflexo na janela, o que me permite ver melhor a cidade. Pouco tempo depois escuto o barulho de uma muriçoca a me importunar. Depois de várias tentativas inúteis de afastá-la, ligo a luz e ela pousa em uma reentrância da janela, me aproximo e pergunto:

– Como conseguiu chegar até aqui nesta chuva?

– Quando eu cheguei não estava chovendo… Vim parar aqui por acaso, planava em uma corrente de ar, fui surpreendida por uma mudança repentina da direção do vento e vim parar no seu apartamento, responde a muriçoca com uma voz arrastada.

– Por que está me incomodando?

– Estou com fome, senti o seu cheiro e me preparava para jantar quando fui interrompida por você. Não estou me gabando, mas já jantei em lugares bem mais elegantes do que este.

– Por que não vai jantar lá?

– Eu sou uma muriçoca operária, janto em qualquer lugar, embora hoje eu prefira os lugares elegantes.

– Sinto muito, mas não pretendo ser o seu jantar, respondi.

– Puxa vida, como você é egoísta, tem tanto sangue e não cede uma gotinha para uma muriçoca faminta.

– Acontece que você pode transmitir inúmeras doenças que iriam complicar a minha vida, vá jantar em outro lugar. Você vai se retirar ou prefere morrer?

– Tanta violência por causa de uma gotinha de sangue, quanta coisa uma muriçoca tem de suportar para se alimentar.

– Dê o fora e leve o seu companheiro com você.

– Como você sabe que eu estou acompanhada?

– Todo mundo sabe que as muriçocas trabalham em dupla, um macho e uma fêmea, enquanto o macho faz barulho em nossos ouvidos e enche o nosso saco, a fêmea perfura a nossa pele e chupa o sangue. Por que vocês não vão ser políticos? Vocês fundam um partido, fazem um programa político cheio de promessas para alimentar o povo, depois chupam o sangue do povo e transmitem todas as doenças que carregam com vocês.

– Acho a idéia ótima, infelizmente já fizeram isso com mais habilidade do que nós teríamos para executar esta tarefa que é a nossa especialidade. Apesar das dores e dos inchaços das mordidas, as pessoas querem continuar a ser ferradas, eu sou apenas uma muriçoca e não entendo os seres humanos.

– Com esta sua conversa mole você está me enganando e continua no meu apartamento, queira fazer o favor de se retirar.

– Calma meu companheiro, estou só passando uma chuva, existe bastante espaço no seu apartamento para nós dois, relaxa um pouco e goza as delícias de uma noite fria de inverno. Só me faça um favor, não liga a televisão porque está na hora dos jornais e não quero que você fique contrariado vendo o noticiário. A contrariedade torna o sangue um pouco amargo.

– Por acaso você está pensando que eu vou deixar você me ferrar?

– Há muito tempo que eu venho fazendo isso e você só agora está reclamando, acho que tenho de desenvolver algum programa de assistência para os que são mordidos por muriçocas com o objetivo de eliminar este tipo de reclamação.

– Não crie mais nada, eu não agüento mais tanta mordida de muriçoca. Adote medidas com o objetivo de gastar menos energia, voe menos e necessitará de menos sangue, com um pouco de inteligência e moralidade o problema da falta de sangue deixará de existir.

– Nada disso, vou criar o cargo Assessor de Reclamação. Todas as pessoas cujas reclamações tenham reflexos na sociedade serão convidadas para ocupar este cargo.

– E o que estas pessoas irão fazer?

– Absolutamente nada! Mas elas serão cooptadas e deixarão de apontar as nossas ferroadas. Não é para me gabar, mas nós sabemos cooptar muito bem.

– Mas isto irá aumentar os gastos e haverá necessidade de criar novos impostos para cobrir estes gastos.

– Haverá reclamações na primeira quinzena, depois todos esquecerão e continuará tudo como sempre foi desde que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil.

Marcos Antônio da Cunha Fernandes
www.marcosfernandes.org
João Pessoa, 29 de julho de 2008.
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