Procurando alguma coisa?

Contos

Exame de Consciência

Quando eu era garoto escutei muitas vezes dos amigos de meu pai uma frase de um conhe­cido escritor paraibano: “Ninguém se perde no caminho de volta”. Do ponto de vista da cami­nhada do ser humano, embora seja mais fácil fluir por um caminho já percorrido, muitos fatores podem alterar as condições do trecho já conhe­cido, dificultando a caminhada de volta. Além de modificações no ambiente físico, ocorrem mu­danças no ser humano, tanto em nível físico quanto em nível psicológico, colocando empeci­lhos para se palmilhar com clareza o trecho de estrada já percorrido e conhecido.

Nos primeiros anos de vida, quando os sonhos e os arroubos da juventude direcionavam meus passos, achava que, após ter percorrido determinado trecho da existência, tinha aprendido as lições propiciadas por aquele caminho. Com o passar dos anos, percebi como meus traumas, medos, angústias e outros fatores perturbadores acumulados ao longo da vida me impediam de enxergar com clareza os trechos percorridos. Em outras palavras, me impossibilitavam de enri­quecer a existência com as vivências que a vida propicia a todos, indistintamente.

A vida é rica em experiências que aprendi a incorporar a meu patrimônio existencial. Mas nos momentos em que o aprendizado era mais intenso e rico, afligi-me com o desconforto das lições e não consegui ver a riqueza de ensina­mentos que estavam sendo oferecidos pela vida. Não estou fazendo aqui a apologia do sofrimento, mas apenas alertando para o fato de que a vida é rica em possibilidades de enriquecimento dos seres humanos, não aproveitadas devido a nossas idiossincrasias. Quantas vezes abandonamos experiências enriquecedoras de nosso patrimônio existencial simplesmente porque se nos afigu­ra­vam difíceis de enfrentar. Quantas vezes na vida escolhemos o caminho a ser se­guido em função dos empecilhos a serem venci­dos, enveredando por rotas que se nos mostravam como mais sua­ves, embora não fossem elas as rotas almejadas. Somente agora vejo como a vida cobra um pedá­gio alto para todos nós que fugimos das refregas tão necessárias a nosso crescimento como seres humanos. Quantas vezes lamentamos não ter en­frentado fatos que alteraram nossas vidas porque não tivemos a coragem necessária para resolvê-los. Como seria diferente minha vida se algumas decisões tivessem refletido meus projetos de vida, meus ideais. Deixei as neces­sidades ligadas à sobrevivência sufocarem meus sonhos, cedi às pressões para ganhar o pão de cada dia e a ou­tros fatores que permiti que me influen­ciassem nas horas decisivas; tudo desculpas es­farrapadas, justificativas pela falta de coragem de seguir um caminho sonhado e desejado, mas ár­duo e dolo­roso.

Até a idade de cinco anos vivi uma vida tranqüila, em uma família de classe média abas­tada. Residia, nessa época, com meus pais, Aprí­gio e Carmelita, e duas irmãs, Maria Alice e Diana, a primeira mais velha do que eu e a outra mais nova. Nosso avô paterno, José Fernandes, já aposentado, morava no Rio de Janeiro, mas pas­sava longas temporadas conosco na cidade de João Pessoa, pois tinha uma ligação muito forte comigo e com Diana. Em um dos períodos em que estava no Rio, adoeceu gravemente, fato esse que fez comunicar a meu pai, solicitando sua presença, pois lhe restava pouco tempo de vida. Meu pai embarcou em um avião para a cidade do Rio de Janeiro. No dia em que ele embarcou, ma­mãe estava muito nervosa e pediu-me para dor­mir com ela. Quando estava adormecido, não sei precisar o horário, escutei o barulho de pancadas fortes na cama. Acordei e liguei a luz do quarto, o que acordou mamãe, a quem relatei o barulho que tinha escutado. Ela olhou a casa toda, mas não encontrou nada, aconselhando-me a dormir, pois provavelmente eu teria sonhado com o ruído. Voltei a dormir para despertar novamente com o barulho forte de pancadas na porta da frente. Levantei e fui dizendo para mamãe, que ainda es­tava acordada: “Estão batendo na porta da frente. Vou ver quem é”. Minha mãe gritou: “Eu não es­cutei nada e você não vai abrir a porta da rua a esta hora da noite. Venha já para a cama”.

A essa altura, eu estava a uns três metros da porta de entrada, que tinha um vidro que per­mitia ver o terraço. Parei, olhei para lá, procu­rado ver quem batera, quando avistei meu avô com seu costumeiro terno de linho branco, enca­mi­nhando-se para a porta de entrada. Dei um grito de alegria e, antes que eu pudesse dirigir-me à porta, ele a atravessou sem abri-la e cami­nhou em minha direção. É interessante notar que esse fato não me causou estranheza. Pedi-lhe a bênção, beijei sua mão, como era de costume na época, e começamos a conversar. Minha mãe, muito espantada, perguntava com quem eu estava falando. Eu lhe mostrava meu avô, dizia o que ele estava falando. Isso aumentava mais ainda sua angústia. Depois de algum tempo, ele informou que teria de ir embora e me mandou voltar para a cama e dormir. Voltei para o leito e adormeci tranqüilamente até o amanhecer do dia, acor­dando com a nítida impressão de que vovô tinha chegado do Rio. Foi frustrante verificar que ele não estava em casa. Ao conversar com minha mãe, ela confirmou o que tinha acontecido, mas não sabia explicar os fatos que ela presenciara.

Quando meu pai retornou, soubemos que o avião tinha quebrado em Salvador. Somente chegou ao Rio dois dias depois. Meu avô já estava enterrado, pois falecera no dia em que ele via­jara. Algum tempo depois que meu pai retornou, recebemos o telegrama enviado por ele quando estava no Rio, comunicando a morte de vovô. Esse foi meu primeiro contato com a morte de uma pessoa querida, aceito por mim de maneira simples e natural.

Aproximadamente dois anos mais tarde, voltei a enfrentar a morte de outro ente querido. É interessante notar que um mesmo fato pode ser a mola propulsora em uma ocasião e em outra ser motivo de queda ou de tropeços, dependendo do modo como é encarado. Um compositor popular já celebrizou essa realidade em canção, cujos ver­sos dizem:

“O que dá pra rir dá pra chorar.

É só questão de hora e de lugar.”

Inúmeros anos transcorreram para que eu entendesse essa realidade, para compreender que o importante não é o fato em si, mas o modo como o encaramos. Quanta energia é gasta até se conseguir enxergar o óbvio, e como é difícil en­xergar o óbvio! Durante anos carreguei um fardo pesado nos ombros por não ter sido capaz de en­frentar essa segunda perda, uma realidade que se me afigurava cruel, mas que no fundo não pas­sava de um fato normal da vida: a perda de um ente querido. O não ter sabido enfrentar essa segunda perda levou-me, mais tarde, a relacio­namentos que não atingiram a plenitude, embora tenham sido ricos e prazerosos. Mas vamos ao fato desencadeador desse tipo de comporta­mento.

Quando eu tinha sete anos de idade, Diana adoeceu gravemente de moléstia infecciosa. Ela era a irmã mais nova, companheira de brincadei­ras, e no período dos fatos aqui relatados tinha cinco anos. Nessa época, na cidade de João Pessoa, algumas famílias tinham duas casas, uma na cidade, onde moravam durante dez meses, e outra na praia, onde eram passadas as férias es­colares do final de ano, após as comemorações natalinas. O deslocamento da cidade para a praia era reali­zado por uma estrada de barro esbura­cada, atravessando o rio Jaguaribe através de uma ponte de madeira. Hoje essa estrada transfor­mou-se na Avenida Epitácio Pessoa e muitas pessoas, ao percorrê-la, não percebem que em determinado trecho estão passando por cima do rio. Como não tínhamos parentes na ci­dade, e com a finalidade de evitar o contágio, eu e Maria Alice, minha irmã mais velha, fomos se­parados de Diana, passando a residir tempora­riamente na casa da praia, na companhia de uma pessoa des­conhecida, contratada para cuidar de nós en­quanto meus pais lutavam contra a doença de nossa irmã. Não era época de veraneio; a praia estava quase deserta, contando apenas com a movi­mentação de alguns pescadores. Ficamos isolados da família e dos amigos. Recebíamos duas a três visitas semanais de meu pai, que vi­nha trazer suprimentos e verificar se tínhamos alguma ne­cessidade material. Quinzenalmente minha mãe aparecia, sempre abatida, lacrimosa, sem manter contato físico conosco, com medo de transmitir a doença, tendo em vista que era ela quem cuidava de Diana. Passaram-se assim as semanas mais longas de minha vida. Os dias pa­reciam intermi­náveis.

Certa manhã estava a brincar, aguardando o horário de ir para o colégio, quando fui sur­preendido pela visita de meu pai, em dia e hora não habituais, pois naquele horário ele deveria estar trabalhando na direção de seus negócios. Ele conversou com minha irmã mais velha, ela ficou muito triste. Papai dirigiu-se a mim, pois eu não me aproximei dele por pressentir a notícia de que ele era o portador. Ele disse que tinha vindo nos buscar para irmos até a casa da cidade com a finalidade de “vermos” Diana, cuja visita até aquela data nos era vedada, e ficou rebus­cando palavras para comunicar a morte dela. Eu já tinha pressentido o objetivo da visita, razão pela qual não me aproximei dele por ocasião de sua che­gada. Não permiti que continuasse a falar e in­daguei se Diana já estava curada e, sem aguardar resposta, disse que iria tomar banho, pois tinha estado a brincar com areia no quintal da casa. O trajeto entre a praia e a cidade foi realizado em silêncio.

Quando chegamos ao destino, desci cor­rendo do carro, atravessei a sala desviando-me de um caixão azul que nunca tinha visto ali e en­trei no quarto de Diana. Como não a encontrei, passei para o quarto de meus pais, encontrando apenas mamãe em sono profundo. Mais tarde vim a saber ter sido um sono provocado por sedativos receitados pelo médico, a fim de propiciar-lhe algum descanso. Nesse momento, meu pai segu­rou minha mão e conduziu-me suavemente até o caixão que eu já tinha visto na sala. Diana estava deitada naquele caixão azul, coberta de flores brancas, aparecendo apenas seu rosto sereno e belo, como sempre a tinha visto no curto período em que desfrutamos juntos os mais belos anos da infância, apesar de estar bem mais magra. Não chorei, não gritei, não esbocei quaisquer reações para extravasar a dor imensa a invadir-me a alma. Apenas fui capaz de solicitar a meu pai: leve-me de volta para a casa da praia. Em se­guida dirigi-me ao automóvel, a fim de sair dali.

Profunda tristeza invadiu minha alma du­rante anos, sem que eu conseguisse identificar a causa. Décadas foram transcorridas desde os fa­tos aqui alinhavados, e somente agora, depois de te­rapias individuais, de casal e de grupo, três ca­samentos fracassados, consigo sondar com rela­tiva clareza o que aconteceu.

Como eu não fui capaz de enfrentar a rea­lidade da perda de uma pessoa amada, muito ar­dilosamente escamoteei a realidade e encontrei um bode expiatório para ficar em “paz” com mi­nha consciência: culpei meu pai de ter sido cruel ao transmitir-me a notícia. Passei a des­crever os fatos relatados anteriormente da se­guinte ma­neira:

“Certo dia estava a brincar, aguardando o horário de ir para o colégio, quando fui surpre­endido pela visita de meu pai, em dia e horário não-habituais, quando ele deveria estar traba­lhando. Ele solicitou que eu e minha irmã tro­cássemos de roupa, pois iríamos visitar Diana. Corri para tomar banho, pois estava sujo de areia. O trajeto entre a praia e a cidade foi realizado com grande alegria, pois eu iria rever minha companheira de traquinagens. Quando chegamos ao destino, desci correndo do carro, entrei no quarto de Diana e, como não a encontrei, busquei o quarto de meus pais, onde ela também não es­tava. Nesse momento, meu pai segurou minha mão, conduziu-me até o caixão e mostrou-me friamente o cadáver de Diana. Olhei para o corpo, não disse uma palavra. Solicitei me levarem de volta para a casa da praia e me dirigi ao carro.”

Essa história, repetida inúmeras vezes nas terapias individuais e de grupo, passou a ser a “verdade” dos fatos. Entretanto, por mais que a repetisse, não conseguia a paz tão almejada. Existia sempre uma inquietação que se asseme­lhava a algo como desconforto. Era bem diferente da inquietação ocorrida no processo criativo, quando estou escrevendo uma poesia, por exem­plo. Esta inquietação se transforma na produção de algo concreto; aquela produz apenas turbu­lência na alma. O processo criativo, quando con­cluído, traz a sensação de um dever cumprido, a calma da paz interior se estabelece em nosso co­ração, a mente entra em estado de repouso. A inquietação não-criativa, de que falamos, é como uma chama de uma lamparina que não clareia e cujo óleo jamais se consome, enquanto ficamos ali aguardando que a chama se apague para tro­car de sistema de iluminação. Não temos a clari­dade necessária porque a lamparina não é ade­quada para iluminar o ambiente e não trocamos de sis­tema porque estamos aguardando que a lamparina se apague. Nessa armadilha, criada unicamente por mim, estava praticamente imobi­lizado ou, dito de outra maneira, fiquei como um cachorro ma­luco rodando em círculos, querendo morder o próprio rabo, que tinha sido amputado ao nascer.

Não fui ao enterro de Diana. Pouco tempo após sua morte, retornamos à casa da ci­dade. A casa era a mesma, a mesma vizinhança, nada mudara, exceto a ausência de Diana, o que pro­vocava uma mudança enorme em tudo, afe­tando até o modo como enxergava o próprio am­biente físico.

Um fato muito interessante aconteceu poucos meses após o falecimento de Diana. Na casa em frente à nossa morava uma garotinha linda, cabelos cor de ouro, pele dourada e um sorriso encantador. Todos os garotos da rua a cercavam, buscando ser seus namorados ou amigos. Um dia recebi um bilhete dela dizendo querer namorar comigo. O bilhete desencadeou em mim sentimentos de medo, indignação, re­volta. Com o papel na mão, atravessei furioso a rua. Ela veio a meu encontro com seu sorriso mais encantador, desfeito à medida que foi per­cebendo minha indignação. Ao ficar frente a frente com ela, rasguei o bilhete, disse uns desa­foros e retornei ao que estava fazendo, possesso de raiva contra aquela garota. Agi como se ela fosse uma grande ameaça, embora naquele mo­mento eu não conseguisse identificar que tipo de perigo ela representava. Somente muitos anos mais tarde eu entendi o raciocínio inconsciente feito naquela ocasião. Deve ter sido o seguinte: como ela ousava fazer isso comigo, eu que já ti­nha sofrido com a perda de um ser a quem amara tanto? Alguns garotos e garotas de nossa rua não entenderam meu comportamento, o que era de se esperar. Eles comentaram o ocorrido; eu só po­deria ser “bicha” por rejeitar namorar o sonho dourado de toda a garotada da rua. Na realidade, eu agi sem pensar, impulsionado pelo medo in­consciente da dor de uma nova perda, e quando os amigos indagaram da razão de ter agido da­quela maneira eu não sabia o que responder. Até a adolescência não me lembro de ter tido amigos ou amigas mais íntimos, não permiti às pessoas chegarem muito perto do coração. Sem­pre fui arredio, fechado, mantendo-me inconsci­ente­mente a uma distância psicológica das pes­soas que conviviam comigo.

Hoje gosto de conviver com as pessoas, de um bom papo, de tomar um bom vinho com os amigos e amigas, mas também aprendi a ficar sozinho. Os fantasmas do passado estão desapa­recendo, graças à ajuda que recebi das mulheres que passaram em minha vida amorosa nos últimos anos, com as quais aprendi muito, e devo ter sido um verdadeiro tormento para elas, pois nunca estive inteiro nas relações, devido aos fatos aqui relatados.

Às mulheres que conviveram mais intima­mente comigo quero deixar aqui registrada a minha eterna gratidão. Perdão pelos transtornos causados, pelas dores provocadas, pelo que buscaram em mim e não acharam, pelo que tinha e não lhes dei. Serei eternamente grato a cada uma de vocês por terem suportado as minhas loucuras por algum tempo. Estarei torcendo por vocês, esperando que encontrem alguém ou algo que seja a realização dos seus sonhos dourados.

Marcos Antônio da Cunha Fernandes
www.marcosfernandes.org
João Pessoa – Paraíba

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