O manto negro da noite cobre a cidade e o silêncio invade as ruas, apenas alguns boêmios perambulam pelos bares e casas noturnas, nas suas peregrinações diárias buscam em vão encontrar algumas respostas nos copos de bebida. De bar em bar procuram a si mesmos sem jamais encontrarem, pois se negam a olhar os seus interiores e as suas inquietações, não examinam o que estão fazendo consigo mesmo e com aqueles que os amam. Procuram a razão do existir no copo que se esvazia sem fornecer uma resposta que aquiete suas almas, eles criam as condições necessárias e suficientes para arruinarem suas saúdes e suas vidas, afetando também as vidas das pessoas que os amam. Alguns despertam e abandonam o vício, sem que saibamos exatamente a razão destas atitudes, tanto a de ter iniciado quanto a de ter abandonado o vício.
Quando eu mantive um rápido contato com uma dessas pessoas, a sua vida estava sendo arruinada pela bebida, a saúde estava sendo afetada pelo álcool e estava prestes a perder o emprego. A família já tinha feito o possível, recorrido à ajuda dos mais diversos profissionais sem que ele abandonasse o copo. A busca da proteção divina não foi esquecida, as várias manifestações de fé religiosa aceitas e procuradas pela família tinham prometido a sua cura, sem nenhum resultado palpável, ele continuou se afundando na bebida.
Ele freqüentou grupos especializados em ajuda a pessoas dependentes de bebidas alcoólicas, onde conseguia melhorar por um breve tempo para pouco depois voltar mais uma vez a beber. A esposa e os filhos lamentavam ver o esposo e o pai a arruinar a saúde e a vida sem que eles nada pudessem fazer, resolveram pedir ajuda a Paulino, conhecido por seu trabalho em favor dos necessitados. Apesar de não concordarem com a fé religiosa de Paulino foram conversar com ele, a possível cura do marido e pai valia o sacrifício de recorrer a alguém de uma crença religiosa não aceita por eles.
A esposa passou um longo tempo com Paulino, foi uma conversa demorada, mas quando ela saiu estava mais tranqüila, sorriu quando se despediu. Após ela ter saído o Paulino me chamou para tratarmos de assuntos pertinentes às minhas atividades naquela casa. Depois de termos trocado algumas idéias sobre as minhas tarefas braçais no campo de ajuda aos necessitados, coisas materiais e sem importância, ele me explicou o caso daquela senhora. Achei o fato estranho, pois ele nunca falava sobre suas conversas com as pessoas, era um túmulo. Ele comunicou que eu iria fazer uma visita ao marido daquela senhora. Eu me neguei a realizar esta visita e nem aceitei discutir o assunto, nunca tinha conversado com ninguém com o objetivo de ajudar, não conhecia o problema do alcoolismo. Eu não era a pessoa indicada para a tarefa, ele fizesse a visita ou arranjasse uma pessoa capaz de realizar tal atividade, mas não contasse comigo nem para acompanhar a pessoa na visita. Nessa época eu estava na casa dos trinta anos de idade, perto dos quarenta.
Durante algum tempo Paulino insistiu para que eu fosse realizar aquela visita, mas eu sempre recusava por falta absoluta de capacitação, o que era uma realidade inegável. Um belo dia o Paulino me apresenta a esposa do amigo do copo e disse que ela iria me conduzir para uma conversa com o marido, que naquele momento estava em casa me aguardando. Senti um frio na barriga, as pernas tremeram e não consegui dizer nada, tal foi o meu susto, interpretado pelos dois como um consentimento. Ela segurou o meu braço e foi me conduzindo para o seu carro, quando recuperei a voz não pude me esquivar daquela criatura que me olhava cheia de esperanças na possível cura do marido. Eu fui orando durante o breve trajeto até a casa dela, não tinha a menor idéia do que deveria fazer ou dizer.
Quando chegamos à sua casa o marido dela estava nos aguardando no terraço, tinha a idade do meu pai. Após a apresentação ele me convidou para irmos conversar em uma praça bem em frente da sua casa. Nós caminhamos sem dizer nada, na realidade eu não sabia o que falar, sentamos em um banco debaixo de uma árvore situada bem no meio da praça, com as costas voltadas para a casa, por escolha dele. Ele olhou para o relógio e me informou que iríamos ficar sentados ali cerca de trinta minutos, mas sem dizer uma palavra, ele não queria escutar nada, fizesse o favor de não incomoda-lo. Após esse tempo nós voltaríamos para casa e eu diria à esposa dele que estava tudo bem e ele me levaria em casa. Eu não deveria dizer para o Paulino e para a esposa dele que tínhamos ficado sem falar nada. Assim ficou acertado e assim foi realizado, pois Paulino era discreto e não me perguntou nada sobre o que tinha ocorrido na minha “ajuda” a uma pessoa com problemas.
Passado algum tempo o Paulino me contou que aquela senhora tinha vindo agradecer a cura do marido, então eu quebrei a promessa e contei para ele o ocorrido, eu não tinha feito absolutamente nada. Eu não sei o que se passou com aquele homem, mil hipóteses podem ser levantadas para a causa ou causas da sua cura, fruto do trabalho de muitos profissionais e também de outros grupos de ajuda fraterna, realizados ao longo dos anos, inclusive as orações realizadas pelo Paulino. Aquela pessoa nunca mais voltou a beber e eu nunca mais esqueci aqueles trinta minutos longos e angustiantes, em que eu perguntava a mim mesmo o que estava fazendo ali. Hoje eu vejo que foi uma lição inesquecível para os dois.
Marcos Antônio da Cunha Fernandes
www.marcosfernandes.org
João Pessoa, agosto de 2006.