Não existe nada que me irrite mais do que alguém – às vezes bem mais novo do que eu, que fiz setenta anos no início de 2012 – dizer “no meu tempo, não havia disso não, as coisas eram bem melhores”. Melhores para quem, cara pálida?
Vamos tomar como primeiro exemplo a educação, no país como um todo. Tenho uma memória danada de boa, e fiz todo o curso primário com professora particular, até prestar o exame de admissão para o Colégio das Neves, em João Pessoa. Lembro que éramos poucos os que podiam ter esse luxo. A taxa de analfabetismo em todas as faixas etárias, à época, atingia níveis do Chifre da África. E não venham me dizer que os menos favorecidos podiam contar com escolas públicas municipais, porque não é verdade. Se fosse assim, porque o percentual de analfabetos era tão alto?
Então, senhoras minhas e senhores meus, “no meu tempo” só alcançava um grau maior de educação quem tinha condições financeiras para isso. A própria legislação brasileira consagrava essa situação. Examinem os “considerando” do Decreto n.º 7.566, de 23 de setembro de 1909, assinado pelo Presidente Nilo Peçanha, que hoje poderiam causar arrepios aos adeptos irredutíveis da linguagem politicamente correta:
“O Presidente da Republica dos Estados Unidos do Brazil, em execução da lei n. 1.606, de 29 de dezembro de 1906:
Considerando :
que o augmento constante da população das cidades exige que se facilite às classes proletarias os meios de vencer as difficuldades sempre crescentes da lucta pela existencia;
que para isso se torna necessario, não só habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensavel preparo technico e intellectual, como fazel-os adquirir habitos de trabalho proficuo, que os afastará da ociosidade ignorante, escola do vicio e do crime;
que é um dos primeiros deveres do Governo da Republica formar cidadões uteis à Nação:…”
A clientela é bem especificada: os filhos dos desfavorecidos da fortuna, todos pertencentes à classe proletária, precisavam adquirir hábitos de trabalho para se afastarem do vício e do crime. Donde se infere que vício e crime também são atribuíveis apenas à indigitada classe proletária. Então, não se tratava de preparar “os filhos dos desfavorecidos da fortuna” para disputarem vagas no acanhado mercado de trabalho – onde o maior empregador (adivinhem!) era o setor governamental, seguido do setor agrícola, do comércio, e de uma indústria incipiente e artesanal –, em concorrência com os “filhos das classes favorecidas”. O alvo não era a preparação intelectual dos desvalidos e sim o adestramento para o trabalho no setor industrial, contribuindo para manutenção da cultura de desqualificação do trabalho manual em relação à formação intelectual.
E até a década de 1930 quase nada mudou. A Constituição de 1937 estabelece em seu Art. 129 a necessidade de se atender à demanda da industrialização, sendo que os operários deveriam sair das classes “menos favorecidas”. De certa forma a política de estratificação da educação tomou contornos ainda mais contundentes em 1942, quando a chamada “Reforma Capanema” estabeleceu que somente os cidadãos de “primeira categoria” ou os futuros “tomadores de decisões” teriam acesso ao ciclo completo: primário, ginasial, estudos livres, exames e curso superior. O acesso à educação dos cidadãos de segunda linha iria até o ensino secundário, normal ou técnico comercial, havendo ainda uma terceira linha, o ensino agrícola, que cobria apenas o ciclo primário. E, o que era ainda pior, havia impedimentos para aqueles cidadãos de segunda linha chegar a um curso superior.
As coisas só começaram a melhorar para as “classes menos favorecidas” com a aplicação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996. E vocês – os saudosistas equivocados – podem até dizer que foi feita uma escolha errada de política educacional, que foi a de alcançar o maior percentual possível de matrículas de indivíduos de sete a quatorze anos. Porque essa escolha não veio acompanhada de medidas para melhorar, com o mesmo ritmo, o nível de qualidade do ensino chamado fundamental à época. Até concordo com vocês, em parte. Mas procurem as estatísticas da educação e comparem os dados de vinte anos para cá.
Portanto, senhoras minhas e senhores meus, não acho que “no meu tempo” era tudo melhor. E, por falar nisso, que se entende por “meu tempo”? Porque o meu tempo é agora, amanhã e depois, não está algum lugar engessado no passado.
Fortaleza, 16 de abril de 2012.