Procurando alguma coisa?

Obras de Amigos

Extrato de um Diário II – Maria Alice Fernandes

Brasília, 23/03/94, às 21h05minh

Quando será que vou parar de ter que contar cada tostão, medir, pesar, fazer opções
entre o básico e algum supérfluo? Pelo jeito, nunca…

Manter, sozinha, um padrão de vida que alguns consideram alto, não é brincadeira.
Minha definição de básico é uma mesa variada e, no setor de educação das meninas, o
melhor colégio que eu possa pagar. E, para mim mesma – compensação – uma casa
confortável, mantida limpa e organizada na medida do possível, e com os quadros e
plantas de que gosto tanto.

Ah! Mas também sonho de olhos abertos, quem disse que não? Um castelo – dos mil
e oitocentos para cá, por que acho os medievais/góticos lindos, mas horrivelmente
desconfortáveis -, com maravilhosas tapeçarias, uma pinacoteca fantástica e uma
biblioteca (chego a babar só em pensar em todos aqueles livros), num país que tenha as
quatro estações do ano bem definidas; jardins e pomar seriam bem cuidados e,
evidentemente, haveria um riacho a correr por perto. E também – mais evidentemente
ainda -, nada de problemas financeiros…

Todos esses sonhos – fuga – só porque soube do preço do hotel para o qual estava
querendo ir, nos feriados da Semana Santa, com as duas pequenas. Mais uma opção:
passar quatro dias em um hotel ou pagar o colégio, o condomínio, as aulas de tênis e
natação, as contas de luz e telefone, a empregada.

Meus gostos e inclinações são de princesa e meus rendimentos de classe médiamédia;
paradoxos assim a gente encontra na literatura, e até acha muito interessante,
mas vivenciar é que é danado. Mas não tem nada, não: na próxima vida quero voltar
linda, alta, loura, zigomas salientes, nariz pequeno/fino/arrebitado, olhos enormes, cílios
de vaca holandesa, boca carnuda e sensual, corpo de deusa, pernas idem. E serei rica,
muito rica. Rica: será que devo me preocupar com este pequeno detalhe? Falando em
detalhes, esqueci de outras exigências: pés perfeitos, mãos finas e delicadas, orelhas
pequenas, cabelos fartos e levemente ondulados e que tenham o brilho da seda; queixo
delicado e pescoço longo também fazem parte da barganha.

Garanto que não vou precisar ser inteligente, culta, forte de caráter, etc. Todos os
etcéteras que importam já estarão implícitos na minha deleitosa carcaça.

Qual ironia, qual nada! Não sou, digamos, feia – pelo menos não me acho, até que
me considero agradável de se olhar, “good looking”. Bem, o conjunto é agradável, mas
para a implacável perfeccionista cuja imagem se reflete no espelho (Lacan, pois não?)
os defeitos de fabricação são evidentes: queixo muito forte, olheiras profundas, olhos
idem, culotes, pernas curtas e um pouco tortas, joanetes pronunciados que deformam os
pés. E os inevitáveis sinais da passagem do tempo: flacidez no pescoço, nos braços, nas
coxas, nos seios, as manchas precoces de senilidade (herança genética) no rosto e nas
mãos.

Nostalgia da juventude? Nem pense nisso, me sinto melhor agora, sou mais gente,
mais mulher do que a bosta-de-alma que eu era aos vinte anos. A vida me ensinou, me
moldou, me fez ser, poliu, suavizou, fortaleceu, enrijou, me deu garras, olhar de ver e
compreender, ouvidos de entender e boca de calar.

Gosto de mim, mais agora do que antes, os cabelos agrisalhando, as marcas do tempo
cada dia mais à mostra. E me vem certa euforia: você viveu, mulher! Está vivendo,
lutando, é assim mesmo, vamos em frente!

E porque gosto assim de mim, sou capaz de amar os outros – todos, em geral,
crianças em particular. Epa! Vamos encerrar por hoje, que estamos tomando o
caminho de generalizações muito estranhas. Discutiremos o tema “amor” num outro
dia.

Brasília, 24/03/94, às 21h30minh

Há quem pense e não tenha coragem de me falar na cara, mas uns e outros,
principalmente outras, já me externaram sua opinião, ou, melhor dizendo, sua piedade
pela minha privação de amor.

Mas quem foi que disse que vivo privada de amor, seus parvos? Qual a definição
que dão a esse sentimento? Para vocês, por certo, ele só existe numa relação entre
namorados, esposos, amantes.

Há o amor pelas minhas meninas, as filhas do meu ventre e a filha do coração, e se,
muitas vezes, é mais doar do que receber – é bem verdade – a corrente existe, tem fluxo
e refluxo, me envolve numa troca amorosa intensa.

A amizade é uma forma de amor, de dar e receber afeto. Cerco-me de amigos que
me são muito caros, homens e mulheres de todas as idades, procedências e feitios.
Recebo e dou carinho, ouço e falo, amparo e sou amparada. Não são multidão, não os
conto às dúzias, mas sou mesmo um tanto reservada.

Minha relação com o trabalho é uma relação de amor, faço o que gosto, e estou numa
fase em que pouco importa se reconhecem ou não, o que conta é a satisfação que tenho
ao produzir alguma coisa que sei que pode vir a ser útil – se as decisões, neste País,
fossem tomadas com base em estudos técnicos… Mas esta é outra e mui longa história.
Amo a vida, o ar que respiro, as plantas, a chuva, o mar, as montanhas, as estrelas, o
universo. E esse sentimento – cósmico? – me é retribuído em energia, e acho que é daí
que vem a minha força (que já fui chamada, sarcasticamente, de Atlas).

E há a lembrança de amor, que amor continua sendo e existindo, mesmo tendo a vida
do(s) outro(s) cessado – companheiro, pai, amigos. O sentimento ficou impresso em
mim, me nutre e sustenta.

PRIVAÇÃO DE AMOR? BAH!!!

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