Procurando alguma coisa?

Obras de Amigos

Extrato de um Diário, 6 – Maria Alice Fernandes

DISCUTINDO RELAÇÕES

Brasília, 17/03/94, às 20h45m

Estou tentando ser honesta comigo mesma e fazer justiça a minhas filhas: elas não
pediram para me dedicar inteiramente a elas e à vida profissional (a última nem ao
menos foi opção, alguém tinha que sustentar a casa). A decisão foi minha, portanto não
seria lógico nem justo que eu lhes cobrasse por isto.

Agora, caríssima, vamos discutir essa sua decisão? Sem negacear, direto ao
assunto, isso pode doer. Vamos aos fatos e por quês. Lembre de quando veio para
Brasília, para se afastar de uma relação que apodrecia a cada minuto; você estava
cansada de ser a muleta, de lutar pelos sonhos do outro, de sustentar a casa – e que
casa! – para que o companheiro mantivesse a quimera de sua própria empresa. Que
inferno havia sido trabalharem juntos durante um ano, lembre das discussões no
escritório, às vezes com todos aqueles peões de obra escutando.

Claro que lembro, agüentei tudo aquilo e mais as pequenas sacanagens, mas havia
ainda uma grande ligação de amor entre eu e aquele homem, algo muito grande,
explosivo, denso, céu e inferno. Mas estávamos começando a nos odiar, por certo iria
acabar de maneira melancólica, seria um final horrível para uma relação excepcional.
Preferi largar tudo, sair sozinha do Rio, deixar as filhas adolescentes e a pequenina,
muito amadas, por três meses que pareceram longos demais naquela época; ainda me
parecem esticados, alongados, infindáveis até hoje, quando os recordo.
E valeu a pena se afastar, arrostar sozinha a responsabilidade da separação dele e
das meninas?

Qualquer coisa seria melhor que a agonia em que estávamos todos enredados, mas
confesso que minha decisão foi tomada pensando em mim em primeiro lugar, do jeito
que as coisas andavam ia terminar fazendo uma bobagem, pensei até em suicídio, não é
uma loucura? Pois é, pensei também que eu e somente eu era responsável pelas duas
mais velhas e que a pequenina, único fruto do meu amor por aquele homem, nunca me
saberia como um fardo. Apenas assumi abertamente uma situação de fato: era e sempre
fui o principal provedor da família.

Foi bom ter largado tudo, ter recomeçado do zero absoluto. Quando as meninas
chegaram, e que nos sentávamos à mesa, no apartamento quase sem móveis, e
conversávamos e fazíamos planos, eu me sentia tão completa, tão feliz, que acho que foi
naquela época que comecei a pensar que não precisava de um homem em minha vida,
que a ligação com minhas filhas e uma vida profissional satisfatória eram suficientes
para me sentir realizada.

Mas vocês voltaram a viver juntos, não voltaram? Por quê?
Porque distância e tempo foram um bom lenitivo, esmaeceram as grandes diferenças,
poliram um pouco as arestas (veja bem, eu disse “um pouco”, certas coisas a gente não
esquece, continuam latentes), deixando aflorar o essencial: um amor muito grande. Mas
havia outro fator: voltamos, sim, mas nos meus termos. Morando em cidades diferentes,
em casas distanciadas por mais de mil quilômetros, ele era essencialmente meu hóspede
nos finais de semana, preservados tanto o espaço dele quanto o meu, a vida em comum
uma negociação entre as partes. Tínhamos pouco tempo para curtirmos um ao outro, e
ainda havia as meninas, reclamando carinho, atenção. Os momentos que sobravam
para nós dois tinham que ser aproveitados ao máximo. Foi muito bom, funcionou, e
durou bastante.

Durou mesmo? Você não está tentando se enganar? Nunca se sentiu atraída por
outro homem? E ele, que era um cara charmoso, o que fazia durante a semana, numa
cidade cheia de tentações como o Rio de Janeiro?
Vamos por partes: o que ele fazia durante a semana não me interessava, estava muito
longe, não afetava nossa relação. Nunca fui ciumenta, para isso é preciso ter um
sentimento de posse do outro, e não acredito que uma pessoa tenha direitos adquiridos
sobre pensamentos e sensações de outra. Sou muito pé-no-chão, terra-a-terra, para
saber que uma estampa de homem, inteligente, diabolicamente charmoso, de um apetite
sexual muito ativo, não levava uma vida de monge durante os períodos em que
estávamos longe um do outro. Não, ele não era um santo, pode crer.
Nem eu. Sempre trabalhei num meio predominantemente masculino, e não sou
totalmente despojada de encantos. Classifico-me como uma mulher interessante, e
posso manter uma conversa inteligente, se me der na telha. Sim, houve um momento
em que me senti particularmente atraída por outra pessoa, cheguei a pensar que valeria a
pena me ligar a esse outro homem. Mas o amor antigo, forte e recorrente, venceu.
Até agora você não explicou a decisão de se dedicar inteiramente às filhas e à
carreira, depois que seu companheiro morreu. Não existiria certo sentimento de culpa
escondido por trás dessa atitude?

De uns tempos para cá tenho me interrogado sobre essa culpa, mas não consigo
convencer-me de que realmente exista. Culpa de que? De tê-lo “abandonado”? Nada
disso: era ou uma relação que estava doente ou minha saúde mental, e sou
suficientemente egoísta para me preservar. Por ter me interessado por outro homem?
Menos ainda, porque esse interesse não foi suficiente para me afastar, nem ao menos
deixou um arranhão, não valia a pena, essa é a verdade.
Quanto mais penso sobre o assunto, mais me convenço que a determinante dessa
decisão foi um grande cansaço. Tive um primeiro casamento que causou um desgaste
tão profundo que levei anos e anos para juntar os cacos. O segundo, apesar do
sentimento (pode chamar de amor, paixão, do que quiser, que a palavra não vai ser
exata), nunca foi uma relação fácil, tranqüila, éramos dois temperamentos muito fortes –
mal comparando, imagine uma naja e uma cascavel que resolvessem partilhar a mesma
toca.

Instinto de sobrevivência, acho. Pode ser… De tanto lutar pelo pão de cada dia e o
leite das crianças, e para manter primeiro um e depois outro casamento, algo deve ter
me alertado (uma gavetinha abriu lá bem no meu inconsciente) para não mais dispersar
minhas combalidas energias em tantos e tão portentosos objetivos.
E você não sente falta de uma relação homem-mulher?
Sabe que não sei? Mas vamos deixar para discutir esta parte amanhã, por favor.

Está muito tarde, e tenho que acordar cedo. Dissecaremos o assunto, prometo.

Brasília, 18/03/94, às 22h05m

Já me lembro o que tínhamos que discutir hoje: se sinto falta de uma relação afetiva
com um homem.
Difícil responder. Sinto falta, sim, de alguém a quem possa confiar meus receios, as
mágoas pequenas e grandes, as inquietações tantas e sobre tantos e diversos temas; com
quem possa conversar sobre o que houve e o que está por vir. Trocar idéias, pedir
ajuda, um ombro para descansar a cabeça, um braço ao redor da cintura, uma mão que
retenha a minha com carinho. De alguém que diga “deixe que cuido disso para você” e
não me cobre o gesto alguns minutos depois. Disso sinto falta.

Mas não me sinto disposta a partilhar o mesmo espaço físico, a tolerar as pequenas
manias, a toalha molhada em cima do lençol da cama, roupas espalhadas pela casa,
cuecas penduradas no varal, não quero mais responder a demandas do tipo “se você não
quer ir comigo, fico em casa mesmo, emburrado e de cara feia”.

Acho que essa opção de viver sem um companheiro é um preço que pago pela minha
independência – sou tão ciosa dela! – o que não quer dizer que não haja momentos em
que me pergunte se valeria a pena tentar de novo, pela terceira vez. Esses momentos
não duram muito, pelos menos não duraram até agora.
Está bom, está perfeito, mas precisava exagerar? Por que não um namorado, uma
“amizade colorida”, um amante? E a energia sexual reprimida?

Namorado, namoradinho, na minha idade é difícil, muito difícil. Sou naturalmente
reservada, não gosto de badalações, aborreço-me mortalmente com jogar conversa fora,
gosto de conversas inteligentes, de discussões instigantes, e aí é que reside o perigo: a
esmagadora maioria dos homens – da minha faixa etária, pelo menos – não está
preparada para conviver com uma mulher assim, eu os assusto. Não é paranóia, não, é
experiência bem vivida.

Vamos encarar: um homem – falemos particularmente dos brasileiros – na minha
faixa de idade e com, pelo menos, o mesmo nível de educação (ou instrução, como
queira), ou está solidamente casado ou então se divorciou e sente atraído por mulheres
bem mais novas que ele. Não estou emitindo juízo de valor, acho mesmo que é muito
válida essa procura da juventude perdida, os faz se cuidarem melhor física e
mentalmente, e muitos chegam a rejuvenescer efetivamente.

Sabe por que estou restringindo o universo de escolha? A chave não é realmente a
idade, do status financeiro nem se cogita, o nivelamento – como o entendo – se dá na
esfera da intelectualidade (Deus meu, acho que estou sendo pernóstica!). Aprendi que
com o passar do tempo a gente fica mais exigente, menos disposta a ceder e conceder.
Não me espanto se achar que é o contrário, recordo que quando se é jovem se pensa isso
mesmo dos mais velhos.

Portanto, se souber de alguém que atenda às exigências, me avise. Se, além da boa
conversa, houver entre eu e o “gajo” alguma atração – “aquela coisa de pele, sacou?” – é
bem provável que eu quebre uma abstinência de sete anos.
‘Tá certo, esqueci de responder sobre a energia sexual tão longamente reprimida.
Pois então lá vai: canalizo-a toda para o trabalho, onde pensa que arranjo alento para me
meter em todos os desafios profissionais que marcaram minha vida nos últimos anos?
Se não descarregasse no trabalho, provavelmente o faria em cima de minhas filhas,
infernizando-lhes a vida (opa!, que idéia tão tentadora!…).
Não acha que está racionalizando sobre sua incapacidade de se comunicar com o
sexo oposto?

É, talvez seja mesmo incompetência no estabelecer uma ponte de comunicação, mas
não é apenas com o sexo oposto, é com a humanidade. Mas pode ser também uma
questão de libido fraca, por que não? Veja bem: tenho bons e grandes amigos, pelo
menos dois deles são meus confidentes, ambos são homens atraentes, muito
inteligentes, mas nunca me passou pela cabeça ir para a cama com qualquer um deles.
Sinceramente, em todos esses anos que se sucederam à morte de meu companheiro,
senti atração sexual em apenas duas ocasiões, mas não o suficiente para, ao menos,
tentar um jogo de sedução – matéria, aliás, que não domino, muito pelo contrário.
Quem sabe voltamos a falar sobre jogos de sedução, amanhã ou depois…

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