Procurando alguma coisa?

Obras de Amigos

Extrato de um Diário, 5 – Maria Alice Fernandes

Brasília, 15/03/94, à 01h30min

Um diário? Você que nunca, nem na mais feroz crise de adolescência acalentou essas idéias – que achava um tanto piegas -, me resolve escrever um diário justo agora, na terceira idade?

E por que não o faria? Em que outro lugar consigo despejar a raiva, a frustração, o medo? E a mágoa, tão profunda, tão dolorida? O ouvido dos amigos não é penico; como vou ousar perturbá-los com toda essa porcaria que sinto dentro de mim?

Nem vou fazer a clássica pergunta “Onde foi que errei?” porque está claro que tenho que ter errado, e muito, e desde o princípio, de que, nem sei. Mas de que “princípio” estou falando? Vamos tentar, criatura, vamos tentar dar uma ordem mais lógica a seus pensamentos. A lógica que vá para o inferno, e eu junto, a lhe fazer companhia.

Pois é no inferno que estou, nem tenho dúvidas. E quem disse que Lúcifer é feio, tem chifres e rabo, um sorriso sinistro, um hálito horrendo, nunca esteve no abismo, neste meu inferno particular. Construído por minhas próprias mãos, ano após ano de passagem por este planetinha fedido. E o que é mais irônico, construído com muito amor. Você pensou, por acaso, que estaria dando um exemplo de vida, uma trilha a ser seguida? Ledo engano, imbecil!

“Você faz isso só para mostrar que é forte, para se exibir para o mundo”. (Que mundo? Olhem só a que se reduziu o que posso chamar de meu mundo…).

E, outra coisa, quem lhe disse que você tinha que ser tão tacanhamente honesta? Você só nos fez aprender que o que ganharmos na vida vai ser com o suor do trabalho, e inculcar sentimentos de culpa por querermos ganhar dinheiro mais fácil e rápido”. (E não é que vocês têm razão? Vou ter a estúpida e duvidosa honra de morrer pobre porém honesta).

“Essa história de você se morder os nós dos dedos e a ponta da língua para não interferir demais na vida dos outros, deixá-los encontrar seus próprios caminhos, é tudo balela, é só disfarce para sua profunda indiferença por nós” (Ó, Cristo, tende piedade!).

“Quem mandou não arranjar um marido rico, sua incompetente? Um haras seria bacana, uma casa de campo com piscina e canil, principalmente canil. Gosto de cachorro, não gosto de crianças, criancinhas me enojam, quero ser diferente de você que se derrete toda quando vê um bebê”.

“Nunca, mas nunca mesmo, vou sair por aí ajudando os outros, você faz isso e o que recebe em troca? Ninguém reconhece… E é por isso que você não junta dinheiro suficiente para a gente ir passear na Europa (ou comprar um apartamento)”.

“O botão de minha calça jeans caiu faz um mês, e você não mandou consertar
ainda!! Não venha me dizer que não teve tempo, por que não sai mais cedo do
trabalho? E as cartas que eu pedi para botar no Correio?”

“Coitadinha, né? É só inteligente, mas pobre, ‘tá gorda (não entendo porque ela não
faz dieta), por que não estica umas pelancas aqui e acolá?”

“Você não me ouve, não me entende, não existe diálogo entre nós, aliás, já estou
falando há meia hora e você fica só me olhando, sem dizer nada!”

“Você não fala, você vomita!”

“Não é possível agüentar alguém se queixando desse jeito, todo dia é um achaque
diferente. Isso tudo é somatização, para nos fazer ter pena de você. Agora você
estragou minha festa”.

E a minha mágoa, tristeza, revolta, devolvo para onde? Onde as vou expelir, para
que não me envenenem? Sinto-me drenada, espoliada, esfolada viva, seca, murcha,
mirrada, encarquilhada, cercada de sanguessugas.

Brasília, 15/03/94, às 21h50min

Desse jeito, vai virar mania. Fez bem, fez muito bem botar a mágoa para fora: papel
e caneta são meus cúmplices, não reclamam, nem se incomodam se às vezes até choro
de raiva, ou não seria de humilhação, também? E que ninguém pense que choro porque
sinto pena de mim mesma. Choro porque não posso e não devo fazer picadinho de
meus algozes, as minhas filiais contendoras de todas as horas.

Gostaria de ver a cara de espanto de vocês, se um dia tiverem acesso ao que escrevi,
estou escrevendo e, pelo andar da carruagem, continuarei a escrever. Queixos vão cair.
Cair? Vão despencar!

Sou agressiva, tenho pensamentos mesquinhos, gostaria de me vingar de vocês,
acertar nas feridas mais profundas, revidar golpe baixo com outro mais sujo ainda. Mas
não, preciso me controlar, tenho que me controlar, não posso por a perder um trabalho
de anos, quem está tentando – ou vem tentando – moldar o caráter de vocês?

É para fundir a cuca de um(a) pobre cristão(ã) essa coisa de parir, criar, alimentar,
limpar xixi-cocô-catarro-remela, piolho, bicho de pé; presenciar a primeira dentição,
cólicas, sorrisos, a covinha no rosto, o brilho nos olhos, o cheiro gostoso da pele, a
penugem da cabeça que vira uma linda juba, o corpo que estica, que muda de forma, o
intelecto que se expande, as conquistas, as derrotas, o gesso no braço, na perna, no pé.
Mas o que dói na gente é quando engessam o coração.

A pergunta é recorrente, não achei resposta nem certeza de um dia encontrar: por
que fazer isso? Relógio biológico uma ova! A coisa está mais para carma… Pior do
que enfrentar essa eterna maratona de fel e mel é fazê-lo por escolha, a despeito do
eventual parceiro-pai-presente-ausente. Quem mandou ser burra? Burra, sim, e ainda
por cima arrogante em onipotência e onisciência.

Inimigos meus, estejam contentes! Nem vossorias e vossências ousariam engendrar
tão requintada vingança.

Você, amigo, lembra de uma ocasião, quase sete anos atrás? Aquele dia em que eu –
ferida aberta pela morte do homem amado – lhe disse que dali por diante iria me
concentrar em desempenhar as duas funções para as quais me sentia mais apta, de
profissional e de mãe? (a ordem é essa mesma, está certo, se trocar é demagogia).

Eta opçãozinha besta! Olha só a m___ que deu no meio da canela: do ponto de vista
profissional deixei picos e me precipito vale abaixo, como mãe o desempenho não deve
ter sido melhor, a julgar pelos resultados audíveis e visíveis.

Se ao menos eu fosse uma mulher bonita… Poderia catar mais facilmente um
homem que me amparasse emocional e financeiramente (que história é essa de “mais
facilmente”, estou tentando enganar a quem?). Se ao menos eu fosse frágil e delicada,
e menos seletiva e exigente, um tantinho mais de burrice, uma pitada a menos de reserva, as coisas teriam rolado sobre trilhos em minha vida.

Vou dormir agora, que não consegui pregar olhos a noite passada. O efeito sobre
minha pobre cara é devastador. Não há colágeno que faça milagre…

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