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Contos

Inspiração

Tal qual bailarina maluca a rodopiar no palco, a Inspiração sussurra palavras sem nexo nos ouvidos do poeta e pede que sejam grafadas na forma de poesia. Para não ofender a Inspiração, dizendo que a poesia ditada por ela não vale o papel e a tinta gastos para registrar tamanha besteira, o poeta cede e coloca a poesia no papel do jeito que ela dita. Quando acaba de anotar tudo o poeta guarda o que foi ditado por ela sem fazer nenhum comentário. Jogar no lixo o que foi escrito, seria ofender as demais porcarias ali depositadas por serem julgadas imprestáveis. Além disso, uma poesia é como um filho ou uma filha para o poeta e ele não consegue jogar fora, então começa um trabalho fatigante de reescrever tudo, dar sentido a cada frase, uma tarefa árdua, pois nada do que foi escrito tem sentido, tanto examinado isoladamente quanto no conjunto. Depois de dois ou três dias de trabalho árduo o texto original é transformado em uma poesia que faz sentido e pode ser lida, com um pouco de boa vontade, por parte de quem se dá a tamanho trabalho, não sei se por um ato de amizade ou de caridade.

Às vezes a Inspiração aparece como uma bailarina de aspecto compenetrado, vestida em traje de gala, a orquestra sinfônica a tocar o Lago dos Cisnes, ela dança com leveza e beleza indescritíveis, isto leva o poeta a pensar que está no Paraíso. Ela segura a mão do poeta e baila com ele nas nuvens, sussurra coisas lindas nos seus ouvidos. Mais tarde, quando a dança pára, o poeta não consegue lembrar na íntegra o que escutou, isto o obriga a escrever com suas pobres palavras os momentos mágicos vivenciados com ela, mas não consegue transmitir a beleza daqueles momentos, nem é capaz de reproduzir as poesias escutadas da boca dela nestes momentos mágicos. Certo dia o poeta conversa com a Inspiração sobre seus encontros.

― Você aparece desarrumada em algumas ocasiões, anda pelas ruas e se comporta de maneira vulgar, diz coisas sem nexo que dá muito trabalho para transformar em uma poesia.

― Eu tenho um lado sombra e um lado luz, algumas pessoas vêem apenas o lado sombra e outras apenas o lado luz, mas muitas enxergam os dois lados. Nós somos luz e sombra, você deveria entender porque me apresento das duas maneiras, diz a Inspiração. Você só gosta de estar comigo quando estou arrumada, mas já lhe ajudei a escrever muitos trabalhos quando estava vestida da maneira que você não gosta de me ver.

 Eu não gosto de escrever o que você me diz quando está desarrumada, coloca o poeta.

 Você não gosta de me ver desarrumada, mas existem pessoas que gostam exatamente desta minha maneira de ser e não gostam de me ver arrumada.

― As coisas que você faz quando está desarrumada mexem com a minha cabeça e os meus sentimentos, nestas ocasiões você dança de um modo que não me agrada.

― Nestas horas eu danço com liberdade no palco da vida, deixo o meu corpo expressar o que a alma sente de uma maneira tão livre quanto posso suportar, tão livre quanto as leis que regem a vida me permitem ser. Eu não tenho medo do meu lado sombra, ele me ajuda muito em determinadas ocasiões que somente ele é capaz de resolver.

― É tão lindo quando você está arrumada e dança algum clássico, os sentimentos mais sublimes são despertados, a alma se sente no paraíso.

― Gosto tanto do meu lado luz quanto do meu lado sombra, cada um deve ser utilizado na ocasião apropriada, não devem ser associados a bom e ruim. A simbologia de luz e treva espirituais não deve ser utilizada aqui, o mais adequado seria espiritual e corporal, todos nós temos espírito e corpo, devemos cuidar dos dois. Em determinadas ocasiões eu cuido das coisas espirituais e em outras das corporais. Você necessita exercitar os dois lados, caso queira ter uma visão ampla e equilibrada da vida.

― Qual deles você prefere?

― Gosto dos dois e recebo deles coisas lindas. Antes de me despedir vou citar uma frase do apóstolo Paulo para você meditar. Depois de falar a frase vou me retirar silenciosamente sem me despedir de você. Fique em silêncio meditando sobre o que escutou, coloca a Inspiração.

― Tudo bem, farei exatamente como pediu.

 “Uma coisa só é imunda para aquele que a tem por imunda”.

Marcos Antônio da Cunha Fernandes
www.marcosfernandes.org
João Pessoa, Julho de 2008.

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