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Obras de Amigos

A Aparição do Expresso da Meia Noite − Ythoganny Nicácio

O relógio está a cumprir a sua árdua tarefa, batendo mais uma vez à sólida meia-noite, fazendo surgir no horizonte o expresso vindo de tão longe que seu assovio frenético nos faz tremer de medo, e mais uma vez dentro de sua carcaça metálica traz aquele anjo que está sempre no mesmo assento. Ela, que não falava, não mexia sequer uma única pena de suas asas, ao menos não no inicio. Não que fosse um anjo, mas gostava de pensar que fosse, sempre com um olhar fixo no nada que se projetava de sua mente primaveril. É assim todas as noites: eu a observá-la em sua inércia, atento a seus mínimos detalhes.

Chamam-me de louco, louco por acreditar que ali naquele expresso da meia-noite exista algo que só eu possa ver. Chamam-me de louco, louco por sentar e espera o nascer da lua, e mais louco ainda por ficar deslumbrado com seu balé magnífico que me leva ao nascer do sol. Se é assim que me chamam, então que assim eu seja: sou louco, e se minha insanidade projetou algo tão belo como esta aparição que vejo todas as noites, então sinto que estou perto de vislumbrar o paraíso.

Não sei de onde ela vem e nem para onde vai. Uma coisa é certa: sempre que o expresso passa nos limites da terra do nunca, sua silhueta esvai-se em meio às brumas desta terra tão santa quanto obscena. Terá ela um elo que a prende nesta densa bruma de fobias e desejos projetados por meros mortais?

Não quero amá-la, não quero odiá-la, não peço gestos e nem olhares, apenas quero a doce loucura de sua presença. Tenho medo do que ela tenha a me dizer, tenho medo de que seu olhar escarlate traga a tona meus segredos que, guardados há tanto tempo não afetam mais a minha sanidade.

– O que faço para que possa contigo discursar? Falei quando não mais suportava o passar dos anos sem ao menos escutar sua voz.

Por que logo para mim ela foi aparecer? Por que só eu vejo e mais ninguém? Que segredos teria para me revelar? Valeria realmente a pena trocar a sua doce história por minha vã sanidade?

– Por que então eu falaria com você, se por tantas vezes te encontrei neste expresso, que tão melancolicamente transporta almas cansadas para suas moradas? Suas palavras em nada se comparavam com as vozes que ouvia frequentemente.

– Não sei, gosto de te olhar, mas não sei de onde vens e nem o que sois.

– Sou uma projeção de tua mente que treme diante das dores de tua sede.

O que teria ela a dizer? Será ela uma história contada por um alguém sem voz, uma história que o vento carrega sem saber o porquê, a mesma história que ninguém quis ouvir?

– Tantas coisas que queria te perguntar, e todos esses anos imaginei tantas conversas, que ficava ensaiando enquanto esperava por você.

– Olhe meus olhos e neles irás ver a pergunta cuja qual queres a resposta. Seus olhos eram cristalinos, um torpor tomava-me o corpo me deixando a mercê de seus desejos, naquele momento tudo fazia sentido, e só uma verdade importava.

Será que deveria eu entregar-me a meus desejos, assim como todos acabam se entregando?

– Como ela está?

– Ainda pensa em você, você sabe que foi triste, mas ela teve de partir.

– Mas não precisava eu a amava tanto, não queria que ela tivesse ido, queria que ficasse comigo, que me abraçasse mais uma vez.

Uma história, uma vida, um filme, passou em minha frente, e mais uma vez a verdade estava mais evidente.

– Ela chora a muitos anos. Você deve deixa-la partir.

– E como posso fazer isso? Quero tanto encontra-la, dizer mais uma vez o quanto a amo.

– Apenas sinta o que ela lhe transmite, toque em mim.

Um sentimento com um misto de amor e ódio me tomou por completo, um amor por tudo o que vivemos, um ódio por ter que me deixar.

– Diga-lhe que ela deve seguir em frente, que eu ainda a amo e sei que ela tinha que partir, diga-lhe com os olhos, com os lábios, diga-lhe com todo o amor que carregas consigo.

– Ela sabe disso, mas você deve partir, pois o peso de tua presença ainda atormenta seu espirito.

– Desta vez sou eu quem desço, eu não mais ficarei neste Expresso, o peso de um sofrimento é insuportável para minha eternidade, mas ainda preciso que leve mais um recado para mim.

– Claro que sim, o que você desejar. De seus olhos vertiam lagrimas, um choro de despedida.

Diga-lhe que ela foi o filme perfeito de um sonho inacabado, um sonho incompleto e cheio de labirintos. Como outrora, meus devaneios falaram mais alto, e por pouco tempo esqueci de mim e não dela, diga-lhe que ficarei a esperar.

– Sim meu amor, ela já sabe, pois sois uma doce aparição quase a enlouquecer-me lentamente que agora parte para longe, e logo te encontrarei na eternidade.

Ythoganny Nicácio

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