A noite empalidece, o sol dá os primeiros sinais de que vai surgir em breve, inundará de luz e vida a cidade ainda adormecida. Pouco a pouco algumas pessoas aparecem para caminhar no calçadão da praia, raros veículos passam pela avenida que margeia a orla marítima. A cidade despertará em breve para mais um dia de trabalho, a agitação tomará conta das ruas dentro de pouco tempo, a praia estará repleta de atividade neste dia de verão. Sentado à beira mar, olhando as ondas a se atirarem nos braços da areia, cobrindo-a de espuma branca, as pernas encolhidas, o queixo apoiado nos joelhos, os braços enrolando as pernas, Alberto medita sobre a sua vida de dificuldades, estudando nesta cidade grande. Chegou há pouco tempo para fazer o curso superior, inexistente na cidade do interior em que nasceu, onde o comportamento das pessoas é tão diferente, amigo e acolhedor, o oposto do tratamento frio e distante, observado por ele na maioria das pessoas que moram nesta cidade grande e agitada. As saudades de casa fustigam sua alma, o carinho da família lhe faz falta, assim como a conversa com os amigos na praça da igreja. Aqui, na cidade grande, tudo é muito diferente, as pessoas não se interessam pelas outras, com raras exceções. Fustigado pelas saudades de casa e pelas necessidades materiais que enfrenta para fazer o curso superior, ele acordou antes do sol começar a dissolver a escuridão da noite. Deixou a pensão onde mora e foi sentar-se na areia da praia, a observar a iluminação do calçadão a refletir-se no mar, o fluxo e refluxo das ondas a cobrirem de espuma branca as areias da praia, ora suavemente, ora de maneira violenta. Absorvido nas suas preocupações não percebe o tempo passar, até que a corrida e os latidos de um cachorro o trazem de volta para o aqui e o agora, lembra da necessidade de ir até a universidade assistir mais um dia de aula.
Após o magro café da manhã, na padaria da esquina, apenas uma xícara de café com leite e um pão com manteiga, ele toma um ônibus superlotado e vai para a universidade. Ele desembarca no seu destino e caminha em direção à sala de aula, atravessa o pátio de estacionamento, repleto de carros coloridos dos mais diversos modelos e marcas. Enquanto caminha vai pensando sobre as desigualdades sociais, algumas pessoas têm tanto, enquanto outras têm tão pouco, às vezes nem o suficiente para se alimentarem. Travara conhecimento com tantas teorias, existiam tantas explicações para as desigualdades sociais que ele fica aturdido sem saber em qual delas acreditar e como explicar tais diferenças diante do seu conceito de Deus.
Na sua vida de estudante universitário um fato chama a sua atenção: uma parcela dos estudantes pertence a famílias abastadas. A grande maioria de tais alunos é medíocre, não por falta de inteligência, mas por não se dedicarem ao estudo da profissão escolhida. Seus esforços eram dedicados a outros interesses que nada tinham a ver com os estudos ora realizados. Dispunham dos recursos financeiros para adquirir os livros e revistas técnicas necessários para estudarem, mas não tinham interesse em adquiri-los, enquanto que ele e outros estudantes pobres disputavam os poucos exemplares existentes na biblioteca da universidade, na busca da aquisição do conhecimento necessário para exercerem com êxito a profissão escolhida. Analisando tais diferenças ele se indaga: Qual a razão para tantas desigualdades entre os seres humanos? De que modo tais desigualdades existentes poderiam ser aplainadas? O encontro com seus colegas de turma tira Alberto destas reflexões.
Os dias seguem o curso da vida e passam velozmente para Alberto, atarefado nos estudos e nas lutas pela sobrevivência. O brilho da sua mente atrai a atenção dos seus professores, durante as aulas passam a fazer perguntas dirigidas a ele, obtendo respostas que iam além das suas expectativas. No último ano do curso seus professores o encaminham para a realização de estágio remunerado em uma empresa, trazendo alívio para a sua precária situação financeira. Após a formatura, Alberto é instigado por seus parentes, amigos e ex-professores, a se mudar para a capital, pois a sua cidade não oferece oportunidade de trabalho para os que lá nascem e sonham com algo melhor para suas vidas do que ser funcionário da Prefeitura ou balconista de alguma loja do comércio local.
Encaminhado por seus ex-professores ele inicia a sua vida profissional em uma grande organização, com salário acima daquele imaginado nos seus sonhos mais otimistas. O casamento com um membro de uma tradicional e abastada família da capital lhe trouxera facilidades na vida profissional. Muitas mudanças ocorreram na vida de Alberto, ele passa a ter um tipo de vida bem diferente daquele a que se acostumara na sua pacata e pobre cidade do interior. Alberto agora é um homem sofisticado, mora em uma casa luxuosa, viaja pelo mundo com a mesma desenvoltura que caminhava na sua cidade, no período da juventude. Os seus filhos têm um padrão de vida que ele conhecera apenas através de revistas e televisão, antes de vir estudar na capital. A sua vida mudara muito desde a época que viera fazer o curso superior. Ele pergunta a si mesmo onde ficara o jovem sonhador, em que vereda da vida ele se desviara dos projetos de outrora. Onde teriam ficado os sonhos de ter uma vida simples e pacata na cidade que o vira nascer e crescer?
Muitos anos são transcorridos desde aquela noite em que Alberto estivera sentado na areia da praia, refletindo sobre as suas dificuldades. Do ponto de vista financeiro é um homem realizado. Do ponto de vista afetivo sente-se bem, tem uma bela família, ama e é amado por sua esposa e por seus filhos, convive em harmonia com eles. Qual a razão de não estar contente consigo mesmo?
A sua família viajou para visitar alguns parentes, mas devido a compromissos profissionais ele permaneceu em casa, onde está agora a examinar sua vida, indagando a si mesmo a causa da inquietação interior que está sentindo. Resolve dar um passeio a pé pelo calçadão da praia, sentir a brisa marinha a bater no seu rosto, olhar as ondas a se atirarem nos braços da areia, cobrindo-a de espuma, como gostava de fazer nos tempos de estudante universitário, hábito abandonado há muitos anos. Sem perceber, ele vai até a rua onde ficava a antiga pensão do tempo de estudante, depois caminha até a praia e senta-se no mesmo local onde gostava de apreciar o mar.
Sob a carícia da brisa vinda do mar ele deixa que a mente faça sondagens acerca de si mesmo. Existirá algum sonho que ele não realizou? Algo desejado no período da juventude, mas abandonado devido a mudanças impostas pela vida? Recorda novamente os seus primeiros anos de vida na cidade que o vira nascer, o contato com a natureza, as modificações ocorridas na sua vida em decorrência da mudança para a capital. De repente, Alberto identifica aquilo que o inquieta, finalmente tinha entendido o que lhe faz falta. A vida simples da sua cidade do interior tinha sido substituída por uma vida sofisticada na capital e era esta a causa das suas inquietações atuais: Alberto sente falta da vida simples do interior. Ele finalmente entendeu que saiu do “mato” para a cidade grande, mas o “mato” não saiu de dentro dele.
Marcos Antônio da Cunha Fernandes
www.marcosfernandes.org
João Pessoa, julho de 2006.