Procurando alguma coisa?

Obras de Amigos

Extrato de um Diário, 8 – Maria Alice Fernandes

As Filhas

Brasília, 26/03/94, às 22h10m

Mostrei ontem minhas anotações ao amigo-confidente, que esteve aqui em casa hoje
para tecer alguns comentários sobre o que leu. Deu sua opinião, como Mestre em
Literatura Brasileira, e quase fiquei sem graça, mas não creio na metade dos exageros
daquele baiano/canceriano arrebatado. Era a opinião do terapeuta que me interessava
mais, embora que, por ser um profissional sério, não possa ele ir muito fundo na
questão, nessas circunstâncias (nem lhe conto, esse meu amigo é também advogado,
pedagogo, musicista e o escambau a quatro).

Mas fui alertada de que estou cortando muito profundamente a própria carne e que
posso me dar mal, um dia desses termino acertando uma veia ou artéria e – sem ajuda
externa – posso esvair-me. Obrigada, amigão, estou ciente do risco mas vou continuar.
O amigo me fez uma pergunta curiosa: onde está a filha mais velha, a Artista, nessa
purgação toda? Longe, meu compadre, pacificada, as diferenças que já existiram entre
nós duas atenuadas pela distância e pela experiência maior de vida da minha filhamulher-
menina.

Algumas das palavras mais duras de engolir eu as ouvi da voz doce da menina-sereia
(outra grande sedutora) que canta como um pássaro de Deus, com uma inexplicável voz
negra para uma meio-judia. Não tão inexplicável assim, o “meio” é por minha conta,
afinal são quatro séculos de mestiçagem desbragada desde que meus antepassados
puseram os borzeguins neste solo pátrio.

Olha, quando eu digo “doce” estou realmente falando de melado de cana e mel de
abelha. Mas se cutucar a gata dengosa é possível ver-lhe as garras afiadas aparecerem,
o pelo eriçar, e é bom se preparar para ser arranhado (a).

Casada hoje, fazendo seu Mestrado em Música, a responsabilidade de conciliar
carreira com casa, marido (obrigada, Honorável Genro, por entender tão bem sua
mulher) e uma filha que herdou – mas nem por isso criança menos amada –, a bela e
sestrosa ave canora conseguiu distanciamento crítico e geográfico que lhe permite olhar
a mãe como alguém que já lutou a mesma luta; acredito que só recentemente é que ela
se deu conta disso. A verdade é que o tom de nossa relação mudou e, se não é
absolutamente harmoniosa, pelo menos não desafinamos demais.

Não estou me queixando, afinal não criei as filhas só para mim, nunca as imaginei
agarradas eternamente à minha saia, foram e são incentivadas a se desligar do cordão
umbilical e sair para o mundo a conquistar os seus lugares. São e serão mulheres fortes,
as minhas meninas, e nem tenho muita certeza de que isto seja bom para elas, mas foi o
que soube lhes transmitir. E porque não as criei – estou criando – para ser vaca-depresépio,
é que às vezes é tão difícil o nosso relacionamento. Prefiro-as guerreiras,
mesmo à custa de embates sem conta, desgastantes.

Sobretudo, reconheço que é muito complicado para elas ter uma mãe que não se
enquadra nos padrões ditos “médios” ou “normais”. Teria sido tão mais fácil se eu fosse
esposa/dona de casa/mãe de tempo integral e as tivesse orientado para serem
submissas/lindas/bem-comportadas moças da sociedade local!

Estão vendo só? Comecei este diário no dia 15, após uma crise brava e, onze dias
depois, declaro abertamente meu amor por elas… Mas não me iludo, daqui a não sei
quanto tempo vou estar novamente espumando de raiva, vou querer assassinar uma ou
outra com requintes de crueldade, faz parte do jogo.

Os estilhaços, porém, continuam espalhados, não consegui ainda nem juntar nem
limpar, não quero varrê-los para debaixo do tapete.

Brasília, 28/03/94, às 12h00m

Estou aqui, no escritório, e nada de substancial para fazer, o que quase me põe
maluca, acho que não nasci para o ócio. Aproveito, pois, para passar a limpo a minha
filosofia de educação, estou tentando encontrar as falhas que devo ter cometido nessa
área.

Antes de mais nada, é preciso deixar bem claro que pari minhas filhas, isto é, no
momento em que o cordão umbilical foi cortado elas passaram a ser pessoas e não
partes ou extensões de mim mesma. De modo deliberado e consciente, eu as criei em
diferentes níveis de respostas às suas necessidades, nenhuma foi educada do mesmo
modo, porque são de caráter e temperamentos completamente diferenciados. A base é
com certeza a mesma – respeito a si próprio e aos outros –, mas a forma de dialogar, de
fazer entender esses ensinamentos básicos é variada, de acordo com as características de
cada uma, e dependente das minhas, evidentemente.

Portanto, as queixas sobre a diferença de tratamento meu em relação a elas são
procedentes. Nunca tratei uma tigresa da mesma forma que a uma gata. Será isso
errado? Mas vamos deixar este palpitante assunto para mais tarde, que tenho que
aproveitar a carona para ir almoçar em casa.

Brasília, 28/03/94, às 16h35m

Prossigo, ainda no local de trabalho, nada para fazer a não ser a expectativa de uma
reunião que promete durar o dia inteiro, amanhã.
Onde estávamos? Na forma de educar as meninas… O que quis fazer delas?

Antes de mais nada, a proposição era transformá-las em cidadãos de primeira classe
(todos nascem iguais, etc.) e, para isso, era preciso que crescessem sabendo que iriam
enfrentar um mundo cada vez mais competitivo; para enfrentá-lo seria necessário que
estivessem bem preparadas, do ponto de vista educacional. E que apenas a instrução
não seria suficiente, preciso seria que escolhessem uma profissão de acordo com os
próprios pendores. Nunca, mas nunca mesmo, lhes foi dado pensar que poderiam viver
como apêndices de outrem, mas que se fizessem algo de que gostassem teriam chances
de fazê-lo bem, teriam meio caminho andado.

Ponto importante: a escolha de uma profissão, a meu ver, não depende de um título
acadêmico. Profissão, independência. E independência que não se restringe a ganhar o
próprio sustento, significa pensar com os próprios neurônios, tomar decisões, escolher
caminhos e se responsabilizar pelas conseqü.ncias de seus atos. Um longo
aprendizado, a começar por amarrar os cordões dos sapatos, a fazer sozinha a tarefa
escolar (a professora passou a tarefa para você, não para sua mãe, filhota), a escolher a
roupa para a festinha… Falando em escolher roupa, este é um tópico que pode gerar
grandes tensões, sabiam?

Fazê-las pensar com a própria cabeça significou, também, que o sentido de crítica
teve que ser incentivado, por que aceitar idéias sem discuti-las? Que isso é uma faca de
dois gumes, não tenho dúvidas, e se voltou e volta contra mim, pobre aprendiz de
feiticeiro. Mas, teimosamente, não me arrependo.

Outros valores tentei transmitir, como honestidade (a gente pode até enganar os
outros, por algum tempo, o difícil é enganar a si mesmo), respeito pelo direito dos
outros (os seus direitos acabam onde o dos outros começa, não é como nós temos
observado na nossa sociedade, onde o direito dos outros só começa onde o seu acaba).

E de outros valores correntes e aceitos as fiz duvidar: por que nossa cultura
cristã/ocidental acha que o caráter de uma mulher repousa sobre uma membrana, o
hímen?

Volto ao assunto, com certeza, pois estou longe de esgotar minha perplexidade.

Brasília, 30/03/94, às 11h40m

Outra vez sem muita coisa que fazer no trabalho, depois de uma reunião que durou o
dia inteiro, ontem. Pelo menos não foi frustrante, conseguimos tomar certas
deliberações que farão o projeto andar.
Continuamos a dissecar a filosofia de educação das meninas? Por certo, do ponto em
que paramos antes de ontem. Essa história de tratá-las de modo diferente deu, dá e dará
sempre margem a confusões. As queixas mais freqüentes são de favorecimento a uma
ou outra; mas como todas apresentam as mesmas reivindicações, acredito que não é aí
que reside o problema.

O fulcro da questão, a meu ver, está em que elas se consideram diferentes da maioria
do seu grupo de relações, por serem mais amadurecidas e responsáveis, terem noções de
valor que não se coadunam com as do grupo (por exemplo, é patente que valorizo mais
as ações na área, digamos, intelectual, e não dou muita bola para carros lindos e
reluzentes, ou excursões de compras a Miami).

Além disso, há o fato de que todas elas foram e estão sendo criadas sem pai.
Afirmativa estranha essa, mas absolutamente verdadeira. As mais velhas, filhas do
primeiro casamento, nunca tiveram uma verdadeira imagem de homem/pai. Um homem
que, emocionalmente, nunca deixou de ser menino, não estava preparado para ser pai.

Para a Artista e a Grande Ruiva, a figura de pai se confunde com a do padrasto; para
a Ruivinha, que nasceu após seis anos de vida em comum, essa figura existe e continua
firme e presente, mesmo após sua morte, há sete anos. Para a Pestinha Menor, adotada
quando Joseph ainda vivia, a imagem é muito difusa, pois quando tinha menos de dois
anos tive que mandá-la de volta para a mãe biológica (e reavê-la um ano depois, quando
o pai adotivo já havia falecido).

É uma história complicada, não é? Mas, pelo menos conscientemente, nunca tentei
ser pai e mãe ao mesmo tempo. O que tentei foi, de certa forma, cobrir as carências que
sabia que existiam, não podiam deixar de existir. E esta é outra razão das atitudes às
vezes exacerbadas de minhas filhas em relação a mim. Para elas, a imagem da mãe é a
da Mulher Maravilha, como a Tigresa às vezes me chama, com azedume.

O que me pergunto, sempre, é: que alternativa tinha eu? Como agir de outra forma,
diante das circunstâncias? Se tiver alguma sugestão, me diga com sinceridade, que
tentarei mudar meu comportamento.

Outra pergunta que sempre me faço: se sou (pelo menos me considero) uma pessoa
inteira, e não me tornei amarga, apesar de tudo – que não foi uma vida fácil, desde a
infância – por que minhas filhas reagem da forma como o fazem? Elas que não tiveram,
até o momento, que passar nem por uma fração do que passei, mesmo na idade delas?

Certo, certíssimo, não devo estabelecer paralelos entre minhas reações e as delas,
aprendi muito cedo que as nossas próprias experiências não servem para balizar a vida
dos outros. E se, muito cedo também, percebi que seria uma eterna marginal (no
sentido de que me comportava e pensava adiante do meu tempo, e sem raízes na cultura
de uma cidade pequena e de mentalidade tacanha), e tive coragem de enfrentar minha
realidade e lutar pelo que achava certo, não posso me furtar a pensar que minhas filhas,
pelo menos, tiveram a vantagem de não partir do marco zero.

Retifiquemos: não parti do zero absoluto, tive os meus exemplos de vida, duas
pessoas extremamente inteligentes, pai e mãe. Que tinham seus deslizes e defeitos,
bem grandes por sinal, que impactaram na vida dos filhos; mas nunca, até hoje, me
peguei pensando que os erros que cometi, a vida que levei e que levo, foram
conseqüência daqueles deslizes e defeitos. Não os considero responsáveis pelo que fiz
de minha vida, pelos caminhos que trilhei.

Por isso minha perplexidade persiste: onde errei? Será por que me considero forte,
têmpera forjada nos embates de existência um tanto atribulada, e estou tentando moldar
minhas meninas à imagem e semelhança da mãe-guerreira?
Não encontrei resposta, talvez precise de ajuda para aclarar esta questão…

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