A noite já estendeu seu manto negro sobre a cidade, sento na varanda do apartamento para olhar Jampa, pensamento à-toa. Noite estrelada, uma brisa suave sopra do mar, nos leva à modorra, fico a pensar na falta de inspiração, nada escrevi nos últimos dias. Estou neste estado de apatia quando percebo uma “sombra” descer das nuvens, aproximar-se rapidamente e entrar na varanda do nono andar. Fazia tempo que a Alma Penada não aparecia, o que acho muito bom! Passado o susto, falo com raiva, antes que ela diga uma palavra:
― Estava muito bem sem a sua visita, falo sem a cumprimentar, para deixar bem claro que ela não é bem-vinda, como sempre faço nas poucas vezes que ela me visita.
― Boa noite, diz ela, apesar de saber que não vou responder. Observo você já faz algum tempo, ela prossegue sem se incomodar com o meu modo rude. Percebi a sua falta de inspiração e vim lhe dar uma sugestão para escrever um conto.
― Você acha que vou escrever um trabalho sugerido por uma alma que vive a me importunar? Boa coisa não deve ser, portanto, dispenso sua sugestão.
― Você vai colocar cada palavra do que vou lhe dizer e ainda vai querer mais informações, diz a Alma Penada.
― Não acredito no que os meus ouvidos escutam, devo estar alucinado!
― Tenha calma… Desejo apenas lhe explicar a causa da sua falta de inspiração.
―Espero que a explicação seja convincente, caso contrário jogo você pela varanda. Mas este seria um ato inócuo, você já morreu e sabe voar.
―Só Deus sabe quantas coisas uma alma tem de suportar para ajudar uma pessoa.
― Não pretendo alongar esta conversa, portanto, diga logo o que deseja.
― Acalme-se e abra os ouvidos da alma para escutar o que vou lhe dizer. Quando deixamos o jardim e o quintal da nossa casa abandonados, as ervas daninhas multiplicam-se e sufocam os demais vegetais que ali vivem. Quando deixamos abandonadas as terras férteis do nosso cérebro, as ervas daninhas crescem velozmente e sufocam as plantas da criatividade. Um cérebro cujas terras só produzem ervas daninhas perde a utilidade, deixa de contribuir para embelezar a Vida.
― E o que a minha alma necessita fazer para manter sempre florido o seu jardim e carregado de frutos o seu quintal?
― É necessário fazer pouca coisa, você verá como são simples as instruções constantes do manual que acompanha cada recém-nascido, agrupadas em dois capítulos e cada capítulo dividido em duas partes: Instruções Gerais e Instruções Específicas. Este manual é colocado no coração da criança pela Cegonha, no momento que ela a entrega para a mãe. O manual de um ser humano não serve para outro, tal qual a impressão digital, cada ser humano tem um manual específico. Em outras palavras, ninguém pode usar o manual de outra pessoa, mas existem instruções de caráter geral, nos dois capítulos, que servem para todas as pessoas. Para ver e ler este livro colocado no nosso coração é necessário ter “olhos que vêem coração”, por esta razão poucas pessoas conhecem a sua existência. Obtive permissão da Cegonha para lhe relatar a existência do manual, pois você ainda não tem “olhos que vêem coração”, não consegue ler o manual depositado no seu coração.
― Nunca ouvi falar deste manual! O que necessito fazer para ler meu manual?
― Apenas amar incondicionalmente.
― Então necessito que você me diga o que contém o manual. Amar já é difícil, amar incondicionalmente está fora das minhas possibilidades.
― Como todos os manuais têm a mesma estrutura, posso dizer que o primeiro capítulo traz instruções para o período que é o seu título: Da Gestação Até o Uso da Razão. Posso lhe relatar alguns exemplos de Instruções Gerais que aparecem no primeiro capítulo de todos os manuais e que devem ser executadas pelos pais, não conheço as Instruções Específicas do seu manual, apenas você tem a possibilidade de conhecer estas instruções. Vou apenas citar alguns exemplos de Instruções Gerais. “Desde o momento que a criança despertar, mantenha o cérebro dela sintonizado na estação Deus, para isto faça várias vezes por dia uma oração em voz suave, algo simples, mas que venha do coração e seja exprimida com suas palavras, evite os textos decorados, recitados de maneira maquinal, sem a participação dos seus sentimentos mais nobres”. “No campo da ética a criança não aprende o que lhe ensinam usando a palavra, mas o que ela observa no comportamento dos adultos que convivem com ela, cada ato das pessoas que a cercam é um ensinamento para ela”. “Ao dirigir-se à criança fale normalmente, o cérebro dela registra tudo e aprende com as pessoas que a cercam, não a ensine a comportar-se como uma débil mental”. “Leia diariamente historias infantis para a criança, isto estimulará nela o desejo de aprender a ler e criará o hábito de conviver com os livros”.
― Muito interessante o que você me diz. Por que razão as instruções de uso geral não são impressas e distribuídas com todos os seres humanos?
― Ninguém gosta de ler manual, por esta razão estes e outros ensinamentos de uso geral são levados a todos através de entidades científicas e religiosas, utilizando muitos meios de comunicação, deste modo as pessoas sabem o que deve ser feito para educar seus filhos. O objetivo fundamental desta fase é ensinar à criança como se ligar à fonte criadora do Universo. Quer um cientista acredite ou não na existência da Cegonha, os seus trabalhos ajudam a divulgar o manual depositado por ela no coração dos seres humanos.
― Fale mais acerca do primeiro capítulo.
― Não é necessário, leia o que já foi publicado acerca do assunto nos livros escritos pelas pessoas de várias áreas da ciência e da religião.
― Você não falou nada acerca das Instruções Específicas do primeiro capítulo. Como a criança vai conhecer estas instruções?
― Desde o nascimento até a criança aprender a ler, a Cegonha a visita diariamente, retira o livro do seu coração e lê as Instruções Específicas para ela. Estes encontros ficam gravados no inconsciente da criança e orientam a sua maneira de agir quando ela está no estado de vigília. Antes que você me pergunte vou lhe dizer: as crianças conversam com a Cegonha antes de aprenderem a falar com as pessoas. Com o passar do tempo as crianças verificam que os adultos não entendem a língua da Cegonha, então as crianças aprendem a falar com os humanos. Com o passar do tempo algumas pessoas deixam de conversar com a Cegonha no período da noite, por isto cometem tantas loucuras na vida.
― Você pode dizer alguma coisa acerca do segundo capítulo?
― O segundo capítulo, cujo título é Idade da Razão, trata da fase em que a criança começa a fazer uso da razão até o final da sua vida. Posso citar apenas algumas Instruções Gerais deste capítulo, isto é, as que aparecem em todos os manuais. Estas instruções também são objetos de publicações científicas, por esta razão os pais não necessitam ler o manual do filho para saber o que devem fazer. Vou citar alguma coisa referente à infância, a título de exemplo. “Quando ela for alfabetizada estimule o hábito do estudo e da leitura”. “Ensine-a a conversar com Deus”. Citarei agora algumas que são para todas as idades tratadas neste capítulo. “Seja humilde”. “Todo dia faça vinte minutos de caminhada”. “Aprenda a conviver”. “Seja para os outros seres humanos uma pessoa que eles podem recorrer nas dificuldades”. Ela olha para mim e sorri, depois cita algumas instruções pertinentes à fase adulta e à terceira idade. “Trabalhe diariamente em alguma atividade e quando se aposentar arranje algo para fazer, trabalhe como voluntário em uma obra de caridade”. “Mantenha contato físico com os parentes e amigos pelo menos três vezes por semana, não se isole”. “Seja uma bênção para as pessoas que convivem com você”.
― Conte-me mais a respeito do manual, digo para ela, fingindo não ter entendido a indireta referente à minha vagabundagem. Dê apenas um exemplo de orientação específica, gostaria de ter uma idéia mais clara a respeito de…
Com um gesto a Alma Penada não me deixa concluir a frase, levanta-se e beija minha careca, o que me causou surpresa. Diz que nada mais pode falar. Antes de partir para as regiões etéreas ela aponta para o meu coração, olha nos meus olhos e diz:
― Aprenda a consultar o seu manual, nele você encontrará todas as instruções de Deus para você.
Marcos Antônio da Cunha Fernandes
www.marcosfernandes.org
João Pessoa, Julho de 2011.
